Papo de Mãe
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Um papo que é de todos nós: a doença mental

Autora do livro “Ela, Eles e Todos Nós”, Tania Celidonio narra o drama e os desafios de uma família que convive com uma doença mental

Tania Celidonio* Publicado em 29/01/2021, às 00h00 - Atualizado às 14h42

Imagem Um papo que é de todos nós: a doença mental

"Ela foi embora antes que eu pudesse contar que conseguimos realizar pelo menos um sonho, juntas. Eles partiram e deixaram, dentro dela, um vazio de tristeza, culpa e impotência. Nós estamos por aqui. Ainda ou por muito tempo. E embarcamos nessa viagem junto com ela."

Minha família materna sofreu um bocado. É como se alguma bruxa má amaldiçoasse vários personagens de um conto de fadas. Um feitiço que mexeu com a cabeça de todos eles. Ninguém passou fome, muito pelo contrário. Mas a improvável maldição impediu que bisavós, avós, tios e pais cumprissem, com alguma felicidade, suas respectivas jornadas em nosso planeta. Alguns partiram sem entender o que vieram fazer por aqui. Outros começaram perseguindo sonhos e tropeçaram em seus próprios delírios. Não seguiram adiante. Sucumbiram.

A doença mental esteve presente durante toda a minha infância, mas minha mãe afastou do nosso dia a dia, meu e de minha irmã, a dura realidade das internações em seu núcleo familiar. Sabíamos que alguma coisa estava fora da ordem, mas o peso de toda a responsabilidade era carregado por ela, a irmã mais velha.

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Depois, na vida adulta, ainda muito jovem, vi minha mãe ter sua primeira crise. Ou o que nós, parentes mais próximos, julgamos que fosse um primeiro surto. Inteligente, culta e antenada em tudo o que aparecia na literatura dos transtornos mentais, driblou amigos e terapeuta. Achou que estava craque na arte da dissimulação. Eufórica, quase não dormia e falava sem parar. Mas houve um momento em que jogou a toalha. Ficou impossível suportar a velocidade e o horror dos pensamentos. Não foi internada – prometemos que não seria –, intensificou a terapia e foi medicada. Mudou o olhar, que adquiriu um aspecto mareado. Presumo que o motivo sejam as batalhas travadas contra o dragão que a ameaçava.

Eu não sabia, mas foi nessa época que ela começou a escrever seus primeiros textos sobre a loucura familiar. Manuscritos que depois ela digitou e tentou publicar. Memórias e lembranças de um tempo anterior ao dela. Sensações de filha pequena carente do afeto da mãe. E o que dizer da própria mãe, minha avó, que foi embarcada antes de largar a mamadeira para um colégio de freiras distante centenas de quilômetros da casa onde nasceu?

O tempo avançou lentamente nas lembranças de mamãe

A primeira lauda foi escrita em meados dos anos 1970 e a última no final dos anos 1980. Foi um período de perdas, crises, separações e muita culpa. Mas ela não parou de escrever e nem de tentar publicar. Imagino que tenha desistido de verdade ali pelo início dos anos 1990. Organizou e guardou os papéis em alguma gaveta, e não tocou mais no assunto. Pelo menos não comigo. Morreu em 2006, pouco antes de completar 75 anos.

Alguns dias depois do enterro, minha irmã e eu fomos desmanchar o apartamento onde ela morou durante muitos anos. Separamos álbuns de fotografias, livros e objetos pessoais. Abrimos gavetas e caixas. Em uma dessas gavetas repousavam seus textos, envoltos por um plástico transparente. Dentro, um calhamaço de laudas datilografadas e marcadas pelo tempo, com algumas folhas manuscritas. Coloquei tudo na mala, voltei para casa, li algumas laudas e engasguei muito. Demorei alguns anos para começar a digitalizar, ler, reler e reescrever as memórias e lembranças que se transformaram no livro “Ela, Eles E Todos Nós”.

O livro é uma viagem por mares revoltos. Dela emergiram histórias de seres humanos não adaptados à vida que costumamos definir como normal. Uma tentativa de enfrentar os abismos que interrompem trajetórias que pareciam destinadas ao sucesso e à felicidade.

“Enquanto despejei minha raiva no outro, acho que me preservei. Mas haveria de chegar um momento, creio, em que a verdadeira luta seria eu contra mim mesma. Foi então que me ajudaram. E em vez de apenas me preservar, acabei me salvando”.

Palavras de minha mãe. Minha herança, minha vida.

Marina, mãe de Tania, e a neta Mariana (1974)
Marina, mãe de Tania, e a neta Mariana (1974)

O Livro

Ela, Eles e Todos Nós
Tania Camargo Celidonio e Marina Camargo Celidonio
Capa e ilustrações – Vanja Freitas
122 páginas
Sem editora
À venda:
Com a autora (livro impresso): 35 reais mais o custo do envio (R$ 7,00).
Pedidos pelo e-mail [email protected] ou pelo whatsapp: (21) 98143-9979
Na Amazon (no formato e-book): R$ 25

*Tania Celidonio é jornalista e escritora 

Veja a entrevista com o psiquiatra Rodrigo Bressan, do Instituto Ame Sua Mente, sobre saúde mental neste momento de pandemia:

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