Papo de Mãe

SÍNDROME DE DOWN – Conheça a história da jovem Priscila

Roberta Manreza Publicado em 28/10/2014, às 00h00 - Atualizado em 03/11/2014, às 11h04

Imagem SÍNDROME DE DOWN – Conheça a história da jovem Priscila
28 de outubro de 2014


Aos 18 anos, Melissa não esperava ficar grávida. Não esperava por um bebê com Down. Não esperava ouvir do pediatra que a criança deveria ser deixada de lado. E não esperava que Priscila fosse superar tantos obstáculos e chegar aos 20 anos alfabetizada, namorando e trabalhando

Por Aryane Cararo – Revista Crescer

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Deixa sua filha num canto, porque ela não vai servir para muita coisa.” Essa foi a última frase que Melissa Barletta ouviu do pediatra, ainda na maternidade. O ouvido zunia. Ela não tinha conseguido escutar muito depois que ele, sem meias palavras, disse que Priscila, sua primeira e única filha, tinha síndrome de Down. O médico falou das características físicas, das cognitivas, das imitações. Mas ela não ouvia. Sentia horror ao homem, ao que ele dizia. Pegou a menina nos braços. Era a primeira vez que segurava um bebê. E, chorando muito, viu no fundo do corredor uma janela. Pensou em se jogar. Ela tinha 18 anos e quase nenhuma informação sobre a síndrome. Naquela época, sobrava ignorância e preconceito, mesmo de onde não deveria vir– do médico e do próprio pai da filha. Hoje, 20 anos depois, muitas superações e descobertas, ela sabe que não há limites para Priscila, uma jovem que fala comos amigos nas redes sociais, lê e escreve, namora e até já trabalhou numa loja de shopping.

Quando jovem, a publicitária Melissa não queria ter filhos ou casar. Engravidou no susto após três meses de namoro com um amigo de infância. Difícil foi contar para a mãe, já no quinto mês de gestação. Porém, nada abalou sua gravidez. Realizou os exames de praxe na época – colheu sangue, mediu a barriga, escutou o bebê, mediu a pressão, fez um ultrassom normal – e não havia motivos para fazer um dos invasivos exames para detectar Down, que são a biópsia do vilo corial e a amniocentese, pois representam risco de morte de 1% a 2% ao feto. Hoje, o teste de trissomia fetal, um exame sanguíneo que detecta o DNA do bebê a partir da 10ª semana de gestação, poderia tirar essa dúvida sem perigo. Mas, afinal, por que uma garota de 18 anos pensaria que seu filho teria Down?

Caracterizada por apresentar um cromossomo 21 a mais no DNA, a síndrome é mais frequente em gestações tardias, possivelmente pelo envelhecimento dos óvulos, independentemente de haver outros casos na família – em mulheres de 30 anos, a proporção média é de um bebê Down em cada mil nascimentos; aos 35, são um para cerca de 350; e aos 40, um para 100. É a alteração cromossômica mais comum em humanos, afetando uma a cada 700 a 800 pessoas, sem distinção de etnia ou classe social. É também a principal causa de deficiência intelectual na população. Melissa pouco sabia disso, aliás, pouco sabia de ser mãe.

O choque inicial

Na madrugada de 13 de abril de 1993, numa mudança de lua, a bolsa estourou. Priscila nasceu de cesárea após dez horas de trabalho de parto e quase nenhuma dilatação. Era uma terça-feira de vento fresco, como Melissa gostava. Na sala de parto, ela gargalhava das piadas do anestesista quando ouviu um barulho curto. Priscila não chorou. “Olhei para ela de ponta-cabeça: cabeluda, do cabelo fino e espetado. Contei os dedos, vi que estava tudo no lugar, olho, nariz, boca, queixo, joelho e capotei.”

Ao acordar, não entendeu a tristeza da família. Ninguém disse nada. Mas quando Priscila foi mamar, a língua que descia até o queixo chamou sua atenção. Houve silêncio no quarto. Os berros vieram só no dia seguinte: eram do marido, desesperado no jardim de inverno da maternidade. Melissa viu tudo da janela. Era hora de saber.

Procurou o pediatra e ouviu que clinicamente ela estava bem. “Aquele clinicamente me pegou.” Na sequência, viu o médico apontando em sua menina uma série de características Down, como quem demonstra um produto defeituoso: uma prega só na palma da mão, olhos puxados, orelhas pequenas, braços e dedos curtos, ligamentos frouxos. “Foi muito duro, me apavorou. Tive medo de minha filha não andar, não escutar, não enxergar, não poder correr. Tinha receio de que ela tivesse uma vida muito limitada. Você vive um luto. Espera por um filho que não vai chegar e recebe outro, que você ama, mas que não tem referências.”

Em choque, só voltou a si com sua tia a puxando para levá-la embora. A família a esperava com o máximo de informações e livros que pôde coletar, entre eles Síndrome de Down – E Agora, Doutor?, de Ruy Pupo Filho (Ed. WVA, esgotado). “Ele tinha uma filha com Down que já era adolescente e ler que eles interagiam bem e que havia um vínculo afetivo me deixou animada”, lembra. Saber que aquele não era o fim trouxe conforto. “Minha filha ia correr na grama, comer areia na praia, abraçar árvore.” É por isso que Melissa pensa hoje em contar sua história num livro, por sugestão até de pais do grupo Algo em Comum, comunidade com mais de 2.300 integrantes no Facebook.

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A primeira noite de Priscila em casa não foi diferente da primeira noite de um bebê qualquer. Cada barulho era um pânico. Fome? Dor? Asfixia? “Você acaba vendo que todas as crianças são iguais, passam pelos mesmos conflitos, e você, como mãe, sente o mesmo que as outras.”Mas talvez com uma propensão a mais à superproteção.

Com 15 dias de vida, a menina foi submetida a vários exames e deu início à fonoaudiologia no Hospital Darcy Vargas (SP), o que favoreceu muito sua dicção, e, mais tarde, à fisioterapia. Os exercícios fisioterápicos são indicados até os 4 ou 5 anos, e a fono deve prosseguir até os 10, além de terapia ocupacional e estimulação em casa. “Cada avaliação que a Pri fazia e não dava nenhum problema, era como se ela nascesse de novo.” Com o acompanhamento, restou apenas a lentidão cognitiva.

Melissa aproveitou todos os momentos para estimular a filha com novas cores, texturas e sabores. As conquistas de Priscila emocionaram o hospital. “Como ela foi muito estimulada, sentou na hora certa, aos 6 meses, andou com 1 ano e meio, um pouco mais”, conta. Uma vitória, já que crianças com Down têm hipotonia muscular, o que atrasa o desenvolvimento motor.

Grandes obstáculos

Se Priscila vencia as barreiras físicas impostas pela síndrome, em casa, não conseguia ultrapassar as da falta de informação. Seu pai proibiu que contassem o que a filha tinha para a família dele, os amigos e os colegas do trabalho. Aquilo ressentiu a mãe e, antes que a menina fizesse 4 anos, eles se separaram. “Para ele, foi um alívio não ter que lidar mais com essa situação”, diz Melissa. Hoje, pai e filha não se falam. “Ela liga, ele não atende.”

Segregação sempre foi uma palavra indigesta para ela e a sua peregrinação atrás de escola regular trouxe muitos aborrecimentos. “Quando eu dizia que ela tinha Down, a pessoa mudava a entonação e falava: ‘Não temos estrutura para receber sua filha’. Como você briga contra isso?” Não havia ainda a lei 10.172, de 2001, cujo capítulo 8 estabelece o direito às pessoas com necessidades especiais de receberem educação na rede regular de ensino.

Priscila só conseguiu vaga numa instituição especial, quando tinha quase 5 anos – logo, a própria coordenação indicou que a garota deveria acompanhar uma turma regular. Por sorte e mais persistência, a mãe conseguiu matriculá-la num colégio particular. Não houve diferenças de tratamento entre ela e os colegas. Mas, com 12 anos de idade, e ainda no 1º ano escolar, algo mudou em Priscila. Ela, que era falante, engraçada e destemida, entristeceu. Um dia, perguntou:“Mãe, eu sou diferente?”. “Por quê?”. “Porque acho que faço as coisas mais devagar.”

A publicitária sabia que o dia da explicação chegaria. Foi a primeira pergunta que fez à psicóloga da filha, quando ela tinha 8 anos – e soube que, na hora certa, a garota perguntaria. “Quando você tem um filho Down pequeno, não vê diferença para outras crianças, pois ele interage, brinca. Mas ela cresceu e se viu diferente. Aquilo a estressou.

As mudanças vieram

Aos 12 anos, Priscila se mudou de bairro e de escola, onde foi novamente matriculada no 1º ano. Sem muita troca de professores, chegou a ser pré-alfabetizada e acompanhou sua turma até o 6º ano, para não perder os vínculos afetivos. Com a rotina, a repetição e a perspicácia de uma professora, que elaborava provas diferentes para ela baseada na observação de que a garota se expressava melhor com desenhos do que letras, as notas começarama aparecer. Porém, no 6º ano, com trocas de disciplinas e de professores a cada 50 minutos e muito conteúdo abstrato, Priscila se sentiu perdida e pediu para sair da escola, aos 18 anos. De fato, pessoas com Down demoram mais nas conexões neurais e sentem dificuldade em lidar com o abstrato. Mas há pesquisas promissoras em andamento, que usam medicamentos para estimular conexões cerebrais, alguns já prescritos para Alzheimer.

Em casa, a garota passou a ter aulas particulares com uma acompanhante pedagógica e acabou alfabetizada, além de ganhar independência. A começar, na alimentação. A educadora a estimulava a buscar receitas na internet, checar a despensa, ir ao mercado, escolher os itens, pagar a conta e, por fim, cozinhar! Hoje, ela conversa com os amigos pelas redes sociais e até escolheu pela internet o candidato a prefeito que mais a agradava para votar. É uma jovem como outra, que cuida do cabelo adora videogame, Justin Bieber e High School.

Foi dessa professora a proposta de colocá-la numa Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), para conhecer melhor o semelhante e a si própria. “Tive uma dificuldade grande de aceitar minha filha lá. Cheguei arrasada em casa, e ela batendo porta. Depois, ela saiu do quarto e falou: ‘Mamãe, vamos experimentar e, se eu não gostar, você me tira’. Aí eu enxerguei tudo. Ela queria, precisava e tinha muita noção dela própria. Ela amadureceu e a única que não viu fui eu.”

A experiência na Apae durante alguns meses em 2012 – muito baseada em trabalhos manuais e atividades físicas – trouxe serenidade, vaidade e um namorado, Erick, que não tem Down. Priscila o pediu em namoro por carta no Natal daquele ano. É um relacionamento de mensagens, telefonemas, presentes, querido para cá, minha princesa para lá – e, recentemente, beijos. Melissa agora se prepara para a próxima etapa: o sexo. Já explicou para a filha como nascem os bebês, como se prevenir e deseja que, no dia em que acontecer, possa estar perto, para qualquer dúvida. Priscila quer casar e ter três filhos – a probabilidade de transmitir a alteração cromossômica para o bebê é de 50% quando um só pai é Down e de 80% quando os dois são. No ano passado, ela teve sua primeira experiência de trabalho, dobrando roupas e alinhando cabides numa loja de shopping – e só saiu de lá porque está mudando de cidade. Para quem foi fadada a ficar num canto, ela foi bem além. “A autonomia vai vir, algumas coisas não serão 100%, então, vai ser como sempre foi: vamos aprender juntas”, diz a mãe.

Isso é um alento para quem tem um filho Down pequeno. Ele fará faculdade? Pode ser. Vai  trabalhar? Naquilo em que tiver dom. Não crie expectativas antes da hora e viva cada fase, é a receita de Melissa. “Sempre achei que a Pri tivesse um limite. E sempre subestimei. Subestimei quando achei que ela não fosse sair da fralda, na hora de largar a chupeta, de andar, escrever e trabalhar.” Mas não houve obstáculos intransponíveis para Priscila.

Link: http://revistacrescer.globo.com/Criancas/Saude/noticia/2014/03/historia-de-superacao.html

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