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A quem interessa o ensino domiciliar?

Se aprender é mais do que assimilar conhecimentos, é ampliar horizontes, como pensar na formação de crianças e jovens em ensino domiciliar?

Alice Andrés Ribeiro* Publicado em 25/05/2022, às 07h58

A escola é o local onde de fato pode se dar o processo de ensino e o desenvolvimento infantil
A escola é o local onde de fato pode se dar o processo de ensino e o desenvolvimento infantil

Não há tema na área de educação que não tenha sido debatido incansavelmente por educadores, sociólogos, filósofos e demais especialistas do pensamento humano. Nesse sadio embate de ideias, discussões sobre as melhores formas de aprender e ensinar, organização de currículos, participação da família na aprendizagem ou importância do ambiente de estudo são vistos sob diversas perspectivas. Mas se há um conceito que, durante toda a nossa história, tem provado ser positivo para a educação, é o de que a escola é o local onde de fato pode se dar o processo de ensino-aprendizagem em toda a sua riqueza e potencial.

A Câmara dos Deputados aprovou, na última quarta-feira (18), em um processo atropelado, o texto-base do projeto de lei que cria regras para a prática do ensino domiciliar, ou homeschooling, no Brasil. Atualmente, essa modalidade de ensino não é permitidapela Constituição Federal, que obriga as famílias a matricularem seus filhos entre 4 e 17 anos em escolas. Em 2018, oSTF (Supremo Tribunal Federal) decidiu que o modelo não é inconstitucional, mas que sua oferta dependeria da regulamentação legislativa. Cabe agora aos senadores barrar essa proposta que priva crianças e jovens da vivência no ambiente escolar e, mais que isso, de seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento.

Nessa discussão, é essencial levarmos em conta a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), um documento técnico que indica os conhecimentos, habilidades e competências essenciais que devem ser desenvolvidos por todas as crianças e jovens, ao longo da Educação Básica no Brasil . Isso ajuda a promover qualidade (ao estabelecer altas expectativas e aprendizagens mais complexas como direitos de todos), a equidade (não importa onde estude, a criança irá aprender o que é essencial) e a dar mais coerência para o sistema educacional. Ou seja, outras políticas importantes além do currículo, como a formação de professores, os materiais didáticos e as avaliações, passam a responder ao que a criança tem o direito de aprender - e não o contrário.

A BNCC já está valendo para todas as etapas, tanto para escolas públicas quanto particulares, e traz uma grande inovação: uma proposta de educação integral, que olha para o desenvolvimento de crianças e jovens em várias dimensões além da cognitiva: física, social, emocional e cultural. Na prática, essa proposta deve se consolidar por meio de 10 competências gerais, que pressupõem a aquisição de habilidades mais complexas, para as quais a vivência na escola tem papel fundamental. Só se aprende a argumentar, a agir com empatia e cooperação, a desenvolver o pensamento científico, crítico e criativo de forma plena - todas essas competências que fazem parte da BNCC - por meio da convivência e interação entre pares e com pessoas diferentes, com apoio de professores preparados para conduzir a construção intencional de processos educativos.

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Evasão escolar, qualidade de aprendizagem, investimentos na escola, saúde mental, qualificação de professores, nada foi mais focal e prioritário para o governo federal, durante a pandemia, do que a discussão sobre o ensino domiciliar.

Os argumentos que amparam o projeto no Executivo e no Legislativo falam em liberdade, individualidade, proteção das crianças. Mas não é papel da escola ajudar a preparar nossos filhos, oferecendo experiências que extrapolam as fronteiras da vida doméstica? Para conviver, aprender a argumentar, debater, estabelecer relações, trabalhar em equipe, compartilhar? Como podemos pensar em formar cidadãos ativos, que participem da vida em sociedade, preparados para as experiências acadêmicas e profissionais, em que se nada se faz sozinho, se essas crianças não tiverem a oportunidade de estar no mundo além do próprio lar?

Além disso, não há como mitigar os danos educacionais causados pela pandemia sem o retorno ao ambiente escolar. Se o trabalho de recomposição das aprendizagens, tão necessário para garantir que conhecimentos e habilidades importantes não fiquem para trás após praticamente dois anos de suspensão das aulas presenciais, exige preparo e formação dos professores, no diagnóstico e na priorização dos conhecimentos, como supor que as famílias estariam habilitadas para tal função?

Quem poderia ganhar com o ensino domiciliar? O Brasil, com certeza, não é.

Alice Andrés
Alice Andrés Ribeiro

* Alice Andrés Ribeiro é graduada em Relações Internacionais (PUC/MG) e é mestre em Direitos Humanos e Democratização (European Inter-University Centre for Human Rights and Democratisation, Veneza/Itália) e em Administração Pública e Governo (FGV/SP). Atualmente lidera o Movimento pela Base, um grupo plural e diverso que teve papel relevante para apoiar a criação da primeira base curricular para o Brasil, e que também tem atuado por sua implementação.

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