Papo de Mãe
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As obras na cidade, o sapatênis e a lagarta

Uma crônica do psicanalista Paulo Bueno, um papo de pai, sobre as obras na cidade

Paulo Bueno* Publicado em 29/06/2021, às 11h07

Pedro, de 5 anos - Foto: arquivo pessoal
Pedro, de 5 anos - Foto: arquivo pessoal

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. A vontade mais recente é a de tirar fotos durante as caminhadas, que já se tornaram hábito. Enclausurados desde o início da pandemia, tínhamos mesmo que sair do casulo em algum momento. Nessas saídas veio a ideia da fotografia. Com o celular na mão, Pedro vai capturando as imagens que lhe interessam.

Dia desses, nos deparamos com o cadáver de uma lagarta estatelado no caminho. O frescor do defunto indicava que foi morte matada. Minha intuição dizia que o assassino era um desses sapatênis que, aos montes, lotam as calçadas de Pinheiros. Há um atenuante, entretanto. Todos sabem que o sapatênis está sempre distraído, a passos curtos e céleres nunca vê quem está à sua frente. Andam em blocos de quatro ou cinco pares, sempre em direção à Faria Lima, segurando seus smartphones. Por isso aperto bem a mão do garoto quando estamos na rua, para que não tenha o mesmo destino da lagarta.

Passada a primeira impressão, comecei a trabalhar sobre a hipótese de que não se tratasse de um simples caso de homicídio culposo, talvez houvesse ali a intenção de dolo contra o inseto indefeso. Eu não podia ignorar que, além dos sapatênis, havia uma porção de sapatos assumidamente sociais, que sabem onde e em quem pisam. Nessas circunstâncias, a investigação não seria tão simples. Mesmo porque, sapatos sociais são influentes e mantêm boas relações com as togas e com os coturnos. Além disso, outra questão que se impunha era saber se foi serviço encomendado ou se foi realizado com as próprias mãos, digo com os pés.

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Deveria considerar, também, que havia alguns poucos mocassins, que jamais poderiam ser descartados. É um tipo dissimulado, cujos passos em falso sempre trazem desconfiança. Os pés descalços, que se multiplicaram na região desde o início da pandemia, estavam definitivamente descartados. Sabem o chão que pisam e respeitam quem tá embaixo.

A luz do flash interrompeu minhas elocubrações investigativas. Como todo bom fotógrafo, o garoto sacou de sua câmera e clicou rapidamente. Não fez nenhum comentário e seguimos.

Após algumas semanas, passeávamos pela rua quando, de repente, Pedro parou, olhou pro chão e exclamou “olha papai!”. “Olhar o que?”. “Você não está vendo?”, perguntou-me. Sem compreender do que se tratava retruquei: “ver o quê? Não tem nada aí menino”. “Isso mesmo, a lagaita que estava aqui naquele dia, que foi outlo, não está mais. Selá que tilalam?”. Para não estender a conversa, respondi “Não sei filho. A gente viu já faz umas quatro semanas. Dificilmente estaria aí até hoje”. Continuamos o trajeto. Observei que seu olhar e pensamento divagavam e perguntei sobre o que refletia. Respondeu-me que achava que a lagarta tinha virado borboleta e que, portanto, deveríamos ir atrás dessa borboleta.

Ele procurou determinado, enquanto eu pensava sobre a transformação que estava sofrendo o bairro. Nossa querida livraria, a Fnac, deu lugar a uma colossal rede de planos de saúde, melancolizando ainda mais a paisagem, que é composta basicamente por grandes edificações. Contrastando com os edifícios, sempre houve pequenas construções térreas que abrigavam os mais diversos comércios, de lojas de variedades a restaurantes de comida caseira. Os sapatênis adoram esses restaurantes, fazem até fila. Eu gosto mesmo é do cheiro, cheiro de batata frita, de feijão e de salitre. Mas evito comer.

Essas casinhas já não existem mais. Derrubaram tudo: as lojinhas, os restaurantes e o salitre. No lugar, obras. Pedro as registra em imagem, eu as registro sonoramente. Uma sinfonia de marretas: agudo, grave, médio, de manhã, à tarde, à noite. É a nova canção de ninar. A atmosfera é ocupada pela poeira, em substituição ao delicioso aroma que vinha dos pratos que comiam os sapatênis. Estes, por sinal, estão em menor número, o que é bom. Dividem espaços com calçados esportivos e – pasmem! – com chinelos e Crocs. O home office impera. Menos para aqueles que, com suas botinas, só fazem barulho: os operários, mestres de obra e engenheiros.

As máscaras, sempre cirúrgicas, nos protegem contra o vírus e contra a poeira das obras. Mas não são eficazes contra a poluição visual. Continuamente vemos novidades: cimento, botinas e caminhões de todo tipo – caminhão-pipa, caminhão plataforma, basculante – nenhum passou despercebido pela câmera do pequeno fotógrafo. Os guindastes são um espetáculo à parte, sempre paramos para assistir. Placas de obras também são alvos. A naturalidade com que ele observa e registra me ajuda a elaborar o fato evidente de que todo o mundo é composto por mudança.

Por fim, prestes a chegar em casa, Pedro gritou: “papai, papai! Olha, um boiboleita! A gente achou, eu sabia que ela não tinha molido [morrido]”. Ela voou e se foi. Linda. As lagartas, assim como as cidades, se metamorfoseiam, e nós, pais, também nos transformamos quando saímos do casulo.

*Paulo Bueno: Pai do Pedro, de 5 anos. Psicanalista, mestre e doutor em Psicologia Social pela PUC-SP e docente do Instituto Gerar Psicanálise, Perinatalidade & Parentalidade.

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