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Mãe que sofreu discriminação com filho autista em avião diz que nada vai apagar a humilhação

Após embarcar com o filho, Taise Pereira foi obrigada a descer da aeronave por não apresentar teste de Covid-19 negativo do filho autista, que não usava máscara. Ela conversou com o Papo de Mãe

Ana Beatriz Gonçalves* Publicado em 21/05/2021, às 07h00

Taise e seu filho Bernardo. - (Foto: Reprodução Papo de Mãe)
Taise e seu filho Bernardo. - (Foto: Reprodução Papo de Mãe)

Taise Pereira, de 29 anos, foi impedida de embarcar em um voo de Recife (PE) para o Rio de Janeiro (RJ), no último dia 16 de maio. O motivo da expulsão foi porque seu filho, Bernardo, de 3 anos, não usava máscara facial de proteção contra a Covid-19. Segundo ela, apesar de apresentar o laudo médico em que explicava que o pequeno era autista, não teve jeito. Taise e Bernardo tiveram que deixar a aeronave, que estava prestes a decolar, por pressão da equipe da companhia aérea Azul, e da Polícia Federal.

"Nada vai apagar a humilhação e o constrangimento. Eu não sabia o que fazer. Estava em uma cidade desconhecida com o meu filho de 3 anos. Não adiantou de nada apresentar o laudo. Ninguém me ouviu, a vontade que eu tinha era de gritar", relembra a mãe, emocionada. Três dias antes do ocorrido, Taise e o filho embarcaram para Campina Grande (PB), onde a família da supervisora mora. A visita teve um motivo especial: o aniversário de 100 anos de sua avó.

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"O voo da ida também fazia conexão em Recife. Até então a ida foi tranquila, não tive problemas. Na volta, embarquei de Campina para Recife e também foi tudo certo, Bernardo estava sem máscara, nem questionaram. Mas quando fizemos a última conexão para pegar o voo para o Rio, a aeromoça me abordou questionando a idade dele e perguntou por que ele estava sem máscara. Eu expliquei que ela era autista e não conseguia usar", conta ela.

Conforme a Lei federal (14019/2020), o uso de máscaras em espaços públicos e privados não é obrigatório para autistas, deficientes intelectuais, deficientes sensoriais ou outras deficiências que impeçam o uso adequado da proteção. No entanto, Taise afirma que isso não foi respeitado. 

"Entrei na aeronave e depois de um tempo a aeromoça perguntou se eu tinha como comprovar que ele era autista. Eu apresentei o laudo médico do Bê, mas ela voltou e perguntou se eu estava com o atestado negativo dele para Covid-19. Ninguém tinha me pedido isso antes", afirma a mãe de Bernardo. Em seguida, ela logo foi informada que por ordem do comandante da tripulação, não seria possível seguir o voo sem o tal atestado. "Eu me recusei a sair da aeronave, falei que era inaceitável, que estavam infringindo a lei federal", rebateu.

Já acomodados, Taise ainda tentou fazer com que o filho usasse a máscara. Hoje ela diz que essa é a única atitude da qual se arrepende. "Eles estavam me pressionando. Foi uma situação bem humilhante e constrangedora. Forcei ele a usar a máscara, mas ele chorava de soluçar", conta. Após a chegada da Polícia Federal, a mãe se sentiu coagida e aceitou descer da aeronave. 

"Os passageiros que estavam ao meu lado ficaram me olhando, querendo falar alguma coisa, mas ficaram intimidados. Alguns deles até pegaram meu telefone", afirma. Um vídeo gravado por uma das passageiras foi publicado na rede social da sobrinha de Taise, Giovanna Araújo. A gravação indignou muitos internautas. "Como uma companhia tem a capacidade de retirar uma mãe que tem um filho de 3 anos, autista, de um voo só pelo fato dele não querer usar máscara?", escreveu a prima de Bernardo na publicação.

Depois de ser obrigada a sair do voo, Taise precisou fazer uma declaração a mão comprovando a isenção do filho ao uso de máscara.  Ela teve o voo remarcado pela companhia, após alguns esforços, e ficou hospedada em um hotel também por conta da Azul. No entanto, para ela, isso não apaga o trauma que ficou da situação. 

"Dói muito. Eu como mãe estou destruída. Ainda não consegui dormir, comer. Fico lembrando toda hora. Meu filho sofreu discriminação. Onde está a lei nessas horas?", lamenta. Agora, ela vai entrar com um processo de danos morais contra a companhia aérea.

Procurada pelo Papo de Mãe, a Azul afirma que está cumprindo a legislação da Anvisa que desobriga clientes com transtorno do espectro autista, deficiência intelectual, deficiências sensoriais ou qualquer outra deficiência a usar de forma adequada a máscara de proteção facial a bordo de aeronaves. No entanto, no caso em questão, eles dizem que "o embarque não foi autorizado pela ausência de documentação comprobatória que pudesse atestar o autismo do menor". 

Casos como o de Bernardo são comuns

Nesta semana, a Defensoria Pública de Mato Grosso notificou um caso idêntico ao de Bernardo. A mãe Natália Soares foi impedida de embarcar com o filho autista de 5 anos. A companhia aérea não foi divulgada pela Defensoria. O ocorrido aconteceu em Várzea Grande (MT) no último dia 11 de maio. A criança também não usava máscaras. Assim como Taise, Natália apresentou o laudo médico do menor, porém isso não foi o suficiente.

Em nota, a presidente da Associação dos Amigos dos Autistas de Mato Grosso, Kelly Viegas, comentou o constrangimento sofrido pela família. “Imagine o constrangimento dessa mãe e mesmo o desespero, pois com uma criança autista tudo deve ser conversado meses, semanas, dias antes, para prepará-los. Preparamos os nossos filhos para viver uma situação fora da rotina e, de repente, ocorre um tumulto? Isso pode desencadear surtos e situações perigosas para eles”. 
Clarissa Meyer, mãe do Caio, de 15 anos, autista,  lembra outro caso que aconteceu em 2020. Uma criança de 4 anos, também com autismo, precisou acionar a justiça para conseguir viajar sem máscara após ela e seus pais serem obrigados a desembarcar de uma aeronave no aeroporto de Belo Horizonte (MG). Para Clarissa, o descumprimento da lei é preocupante.
"No caso dos autistas, é preciso considerar que eles se desorganizam facilmente, possuem hipersensibilidade sensorial e dificuldade de coordenação motora, o que pode prejudicar o uso da máscara da maneira correta, principalmente para os pequenos", afirma a mãe do Caio. Ainda para Clarissa, faltou sensibilidade, empatia e informação por parte da empresa aérea. "É preciso considerar que por trás desta cena lamentável, existiu todo um trabalho de uma mãe de preparação para este menino viajar que foi desperdiçado. Não é só chegar e entrar no avião. Muitas vezes, são semanas de planejamento. Quem conhece, sabe", completa.

O que é o autismo?

Por definição, o autismo é uma condição, um espectro, o chamado TEA: Transtorno do Espectro Autista. E há vários níveis de autismo: leve, moderado e severo. O autismo leve já foi chamado de “Asperger”, mas a nomenclatura agora está mudando.

Com diagnóstico precoce e terapias adequadas, o autista se desenvolve muito e um autista severo pode, por exemplo, evoluir para um nível moderado. Pelo menos é isso que a neuropsiquiatra Raquel del Monde, mãe do Bruno, de 22 anos, que tem autismo leve, contou ao Papo de Mãe no começo desse ano. (confira a entrevista abaixo)
Taise Pereira descobriu o autismo do filho aos 2 anos. Segundo ela, foi um baque para a família. "Ele apresentava sinais bem fortes, mas eu nunca tinha tido contato. Meu mundo acabou por um tempo, eu não sabia como ia lidar com a situação. A gente sempre escuta as histórias, a dor do outro, mas quando passamos por ela é diferente."
Atualmente, o pequeno Bernardo tem acompanhamento médico com psicóloga e fonoaudiólogo. A mãe conta que se preocupa que a situação na viagem se torne um trauma para o pequeno. "Ontem levei ele na terapia e expliquei o ocorrido. A psicóloga falou que vai trabalhar para reverter qualquer aversão à máscara", conclui.
*Ana Beatriz Gonçalves é jornalista e repórter do Papo de Mãe

Veja também a entrevista com Clarissa Meyer sobre autismo e se inscreva no canal Papo de Mãe:

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