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Exploração sexual infantil: mãe relata abuso sofrido pela filha e sofrimento que parece não acabar

18 de maio é o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. O Brasil fica em 2º lugar no ranking mundial de exploração sexual infantil

Maria Cunha* Publicado em 18/05/2021, às 13h45

18 de maio. Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.
18 de maio. Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

"Levei ela correndo pra um hospital, mas não imaginava que se tratava de um abuso". Essa é parte do relato de Vanessa Vieira*, 45, que foi abusada no passado e teve sua filha abusada sexualmente pelo ex-marido, pai da criança. 

Vanessa* tem dois filhos. O mais velho, de 19 anos, é de seu primeiro casamento. Sua filha está com 10 anos. Ela conta que havia saído de seu primeiro casamento com a autoestima muito baixa e conheceu o pai de sua filha, com quem permaneceu casada por um ano. Apesar disso, Vanessa* diz que o ex-marido cuidava bem da filha e que isso não foi uma das causas do divórcio. 

"Era super apegado, não queria que ninguém pegasse a filha no colo, nem a própria mãe, nem meu filho mais velho. Eu achava que era normal, coisa de pai, que costuma ser mais protetivo com a filha", conta Vanessa Vieira*. 

A filha de Vanessa* nasceu em 2011 e, até 2014, as visitas aconteciam livres, mas ela nunca dormia na casa do pai. Em maio de 2014, o pai da menina a buscou para passar um fim de semana com ele. "Eu achei que não tinha problema, ela não usava mais fralda, era tranquilo", conta Vanessa*. 

A mãe da menina relata que quando buscou a filha, com 3 anos na época, ela estava muito brava, mas Vanessa* atribuiu ao fato de já ser tarde e a criança sempre dormir cedo. "Ela parecia estar meio ludibriada, como se tivesse tomado alguma coisa. Não sei explicar. Levamos ela pra casa e foi questão de uma hora, ela acordou berrando, pedindo pra ir no banheiro. Ela segurou as duas mãos, doía muito. Ela estava com o ânus e os lábios da vagina parecendo que tinham passado uma lixa. Colocava a mão no bumbum e dizia que estava doendo", relata Vanessa Vieira*. 

Vanessa* imediatamente levou a filha ao hospital e foi atendida por uma pediatra que estava de plantão e afirmou que não eram assaduras. A médica chamou a brigada militar, o conselho tutelar e Vanessa* foi encaminhada para fazer o boletim de ocorrência. "Foi quando me dei conta do que estava acontecendo. Quando eu fui entrar em desespero, a conselheira tutelar me segurou e disse: Agora você vai ter que ser forte, esse procedimento é muito doloroso", completa a mãe da menina. 

Vanessa* e a filha foram encaminhadas para o IML, em Porto Alegre. Ao chegar lá, a mãe da criança conta que o único perito que tinha estava dormindo e se negou a fazer os exames em sua filha, afirmando que “se ela está viva, ela não foi estuprada. Isso aí é sujeira, deixa de ser relaxada, leva essa criança pra casa e vai dar um banho”.

Segundo Vanessa Vieira*, a filha não pode tomar medicação para dor e não deixaram dar um banho na menina. No dia seguinte, também não fizeram exames. "Os médicos falaram que o hímen estava intacto e que por isso não dava pra dizer que era decorrente de abuso". 

Apesar disso, mais tarde, com as avaliações psicológicas, a menina contou e demonstrou todos sinais de criança abusada. Isso fez com que Vanessa* conseguisse fazer com que o ex-marido ficasse afastado por 3 anos. "Depois desse tempo, ele entrou com um processo para restabelecimento de visitas, alegando que a denúncia era falsa e que era Alienação Parental. Ele não respeitava a ordem de distanciamento, fazia gritaria em frente da nossa casa", expõe Vanessa*. 

Em Porto Alegre, o pai da criança descobriu a escola da filha e onde ela e a mãe moravam. No processo de família não aceitaram os laudos anteriores, nada do outro processo valeu, e a Vara de Justiça determinou que o pai tinha direito a aproximação. "Tudo que eu falava era considerado prova de alienação parental. Em 2017, ele ganhou o direito de visita", lamenta a mãe da menina. 

Um mês e meio depois, o pai ganhou o direito de visitar todos os finais de semana e a criança voltou a apresentar os mesmos sinais que tinha em 2014, segundo a mãe:  "Ela não falava com mais ninguém, se escondia debaixo da cama, ela fez tipo uma cabaninha para se esconder, não interagia com os amigos da escola, ficava em posição fetal, vários outros sinais".

Vanessa*, novamente, foi procurar a justiça e outros centros de referência para pedir ajuda. A filha tinha 7 anos. "Ela contou que o pai estava colocando a mão dentro da calcinha dela, que colocava as mãos no peito dela". 

Mesmo assim, ela foi obrigada a comparecer em uma audiência e manter as visitas, pois o juiz afirmou que não havia provas suficientes e reforçava a ideia de alienação parental por parte da mãe da criança. Apesar disso, a psicóloga estabeleceu que todas as visitas deveriam ter acompanhamento. "A gente conseguiu manter as visitas, por um tempo, com uma pessoa de confiança minha. Em março do ano passado, a gente pediu a suspensão das visitas por causa da Covid-19 e continuamos tentando outros processos. Depois de sete anos, conseguimos que juntassem o primeiro processo ao segundo fato criminal. Eles identificam que houve abuso, apesar dele não ter sido condenado", completa Vanessa*. 

Com isso, todos os juizados passaram a reconhecer que a criança foi abusada sexualmente, mas o juiz de família responsável pelo caso não. Ela conta que "Muitas vezes, o juiz nem precisou ler o processo e está recheado de provas". Mãe e filha seguem sob ameaças. 

"Eu penso o que eu fiz pra ter passado por isso e minha filha também. Outros momentos eu penso que, se eu não tivesse sido vítima, não teria percebido os sinais tão facilmente. No processo, eles usam isso contra mim e dizem que como eu sofri abusos no passado, eu projeto isso na minha filha" (Vanessa Vieira)

A mãe da menina reforça que já são sete anos de processo para ter a guarda da filha e que isso tem alto custo. "Eu tinha uma vida estável, uma boa casa e agora eu moro de aluguel, tenho um carro que já tem 10 anos. O resto eu fui me desfazendo pra pagar advogado, perito.  A gente é obrigada a se desfazer de tudo pra manter os filhos perto", finaliza Vanessa Vieira*. 

*nome fictício para proteger a entrevistada e a criança.

ONG Visão Mundial: Como agir e combater o abuso sexual em crianças e adolescentes?

A assistente social, especialista no enfrentamento à violência doméstica contra crianças e adolescentes pela USP e assessora técnica da ONG Visão Mundial, Márcia Monte, afirma que "os números são preocupantes e é urgente trazer o tema à tona, principalmente neste momento de isolamento".

A Visão Mundial faz parte da World Vision International, que está presente em cerca de 100 países. No Brasil, a ONG atua desde 1975, beneficiando 2,7 milhões de pessoas com projetos nas áreas de educação, proteção da infância, desenvolvimento econômico e promoção da cidadania. Segundo a organização, mais de 95 mil denúncias de violência contra crianças e adolescentes foram registradas em 2020. De acordo com um relatório do Disque Direitos Humanos (Disque 100), publicado em 2020, a cada hora, três crianças ou adolescentes são violentados sexualmente no Brasil:

  • 82% das vítimas são do sexo feminino
  • 87% dos acusados são homens
  • 73% dos casos acontecem na casa da vítima ou do suspeito
  • 40% dos crimes são cometidos pelo pai ou pelo padrasto 

Dados governamentais indicam que, no Brasil, são 500.000 casos de exploração sexual por ano e é estimado que somente 10% dos casos sejam notificados. O país é o 2º no ranking de exploração sexual infantil. Dados do Ministério da Mulher Família e Direitos Humanos mostram que, entre março e abril de 2020, denúncias de violência sexual contra crianças aumentaram 50%, mesmo com os casos de subnotificações e do silenciamento da vítima, pois o principal espaço de denúncia, a escola, está fechado durante a pandemia.

A assistente social revela que o fato de termos uma cultura machista também aumenta a violência: "Ainda ouvimos aquelas frases: é minha mulher, minha filha, eu que mando. Isso reforça a violência. Até na educação vemos isso, a ideia de bater na criança, tudo contribui para uma sociedade que violenta crianças e adolescentes". 

Márcia Monte explica que a ONG também desenvolve trabalho com parceiros nas comunidades, "assim é possível estar em todos os lugares do país e ter uma capilaridade enorme por mobilizar muitas pessoas". Entre as metodologias para trabalhar a prevenção às violências, nesse momento, a Visão Mundial está fazendo campanhas e atividades com as crianças, mesmo remotas, de contação de histórias. Para os adolescentes, outras metodologias de trabalho são utilizadas. 

Também nessa época de pandemia, a Visão Mundial enviou material para as famílias e crianças. Quase 550 atendimentos diversos foram realizados. "A gente já vivia uma pandemia de violência e veio a pandemia da Covid. Agora as crianças estão isoladas, em casa, mais perto dos agressores, porque, na maioria das vezes, a violência acontece dentro de casa, é uma violência intrafamiliar", afirma Márcia Montes.

A Visão Mundial também trabalha junto com as escolas na prevenção da violência, implementando as comissões de proteção e prevenção às violências. Hoje, está ocorrendo uma ação em Fortaleza, com 500 professores da rede estadual, sobre como evitar e notificar essa violência contra crianças e adolescentes. 

Também em homenagem à data, a Visão Mundial organizou diversas ações para debater o assunto e dar visibilidade à causa. Além disso, no mês de maio, a organização realizará entregas, em todo o território nacional, de Kits de Ternura e de Proteção, voltados para meninos e meninas, para ensinar, de forma criativa, sobre partes do corpo, limites e sobre como buscar ajuda caso presencie ou passe por alguma situação de abuso ou violência sexual. 

As atividades comemorativas começaram dia 17 nos canais digitais da organização. No Youtube, será transmitida uma contação de história do livro "Não me toca, seu boboca!", da autora Andréa Viviane Taubman. A obra aborda de forma simples e lúdica a temática do abuso infantil e como as crianças podem e devem agir em casos de atitudes suspeitas por parte de algum adulto. 

"Nós tivemos, no ano passado, crianças grávidas, meninas de 12 e 13 anos. Isso parece naturalizado. É uma violência contra uma criança. Ela perde o direito de ser criança, ela não consegue nem entender o que está acontecendo com ela. Nas comunidades, isso é ainda mais normalizado", relara Márcia Monte.

Campanha da ONG Visão Mundial
Campanha da ONG Visão Mundial

A mensagem de Márcia Monte, assistente social e assessora Técnica da ONG Visão Mundial, é que "neste 18 de maio,  dia nacional de enfrentamento à violência sexual de crianças e adolescentes,  possamos ser sensíveis e empáticos, denunciando qualquer violência contra nosso público infanto-juvenil". Para denunciar, disque 100.

*Maria Cunha é repórter do Papo de Mãe

Assista ao programa do Papo de Mãe sobre os direitos das crianças:

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