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Como os pretos aguentam?

O ator e escritor Vinicius Campos fala do racismo na Argentina e no Brasil, e pergunta quando a gente vai se questionar: "E se fosse comigo?"

Vinicius Campos* Publicado em 11/06/2021, às 11h53

Kathlen Romeu foi morta com tiro de fuzil durante operação da Polícia Militar no Rio de Janeiro - oto: Reprodução/Instagram/@eukathlenromeu
Kathlen Romeu foi morta com tiro de fuzil durante operação da Polícia Militar no Rio de Janeiro - oto: Reprodução/Instagram/@eukathlenromeu

A gravação foi cancelada. Depois da frustração inicial vi uma oportunidade para colocar algumas coisas em dia. Trâmites de banco atrasados, projetos paralisados, reuniões. Quando parei para olhar no relógio já passavam das três.

-Vi, você busca a verdura? - gritou o Edu lá de cima. 

Peguei o carrinho de feira e saí. Que bem me fez receber o calor do sol e o frescor da brisa outonal. A praça pertinho de casa estava cheia de jovens tomando chimarrão, passeando seus pets, senhoras bem vestidas olhavam as vitrines, e os cafés elegantes com as mesas ocupadas de gente feliz, tomando uma bebida gostosa, de óculos escuros grandes e caros, sorrisos embaixo das máscaras. 

Nem parecia que existia pandemia, por um instante me esqueci que estava com a máscara e fui feliz. De repente passou por mim uma policial. Ela caminhou acelerada até alcançar um garoto. Moreno, roupas velhas, sujas, uma mochila e nas mãos pacotes de lencinho. Outro policial se aproximou. Foi rápido. O menino foi colocado contra a parede. Pensei em ficar ali monitorando que ele não sofresse violência nem injustiças, terminei me convencendo que eu não podia fazer nada. Até me senti meio inocente. Talvez ele estivesse roubando, talvez o meu preconceito contra as forças de segurança não me permitisse entender que furtos acontecem, principalmente em épocas de crise. Talvez alguém o tivesse visto pegando um celular. Para tranquilizar minha consciência, pensei: é o trabalho da polícia, proteger todo mundo que quer ter uma tarde gostosa.

Fui até a quitanda, mas já não era o mesmo. O dia já não parecia tão lindo. Palermo tinha se transformado apenas num bairro metido a besta capaz de evidenciar as desigualdades sociais que tanto me incomodam.

Comprei as verduras, orgânicas porque gente grã-fina não só se alimenta, mas se dá o luxo de escolher o que há de melhor, e peguei o caminho de volta. Depois de um quarteirão vi o garoto. Aquele da mochila, parado pela policial. Ele caminhava tentando vender seus lencinhos. Caminhava livre certamente porque a força policial não encontrou nada em sua mochila que o pudesse incriminar. O único crime que ele tinha cometido era o de ter nascido escuro e pobre. E ele sabia. Eu sabia. Você sabe.

Talvez ele inclusive já tenha até se acostumado com esse tipo de abordagem, tenha se acostumado a ter que ficar contra uma parede simplesmente por existir. Mas a vergonha continuava ali, eu vi no olhar dele.

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Uma vez eu estava voltando do colégio com alguns amigos e encontramos uns canos de papelão, desses de lojas de tecidos. Minha escola ficava no Brás, um bairro de São Paulo com muitas lojas e fábricas. A gente começou a brincar com aqueles canos. Lutinha, batendo eles contra a grade das lojas fechadas, rindo do barulhão que aquilo fazia. Minutos depois parou uma viatura. Desceram dois policiais. Mãos na parede. Um deles nos perguntou onde morávamos. Meus amigos, todos da zona Leste, eu: Perdizes. O policial me perguntou: "O que faz um garoto branquinho de família boa com esse bando de vagabundo?".

Imagina se o moreno, escuro, preto, neguinho fosse seu filho. Que todos os dias ele fosse parado pela polícia só por caminhar, por existir, por não morar nas Perdizes, nem em Palermo, por ser escuro, preto. Imagina que além de pararem ele, batessem nele, humilhassem o seu filho.  Imagina que levassem seu filho preso, que matassem seu vizinho, seu pai, sua filha, sua filha grávida. Você aguentaria? Quanto? Quanto tempo você suportaria antes de se revoltar? Antes de explodir? Antes de querer vingança?

Eu não sei como meus amigos pretos aguentam. Juro que não sei. Só sinto vergonha por ser parte de um mundo tão injusto. E sei que as coisas só vão ser diferentes quando a gente começar a se importar de verdade e deixar de olhar pro lado. Quando a gente perguntar: e se fosse comigo?

*Vinicius Campos, escritor e pai de 3 adolescentes – Colunista do Papo de Mãe.
instagram: @viniciuscamposoficial

Assista à entrevista com a comunicadora e ativista Deh Bastos sobre antirracismo. 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Papo de Mãe. 
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