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Como a violência institucional chega a atuar contra as mulheres no judiciário brasileiro

Aplicabilidade da Lei Maria da Penha deve ser híbrida, dizem especialistas. Saiba também quais podem ser as punições para magistrados

Redação Papo de Mãe* Publicado em 30/12/2020, às 00h00 - Atualizado às 12h50

Imagem Como a violência institucional chega a atuar contra as mulheres no judiciário brasileiro

Após a repercussão do caso de uma denúncia publicada no site Papo de Mãe aqui do UOL, em que um juiz menospreza a Lei Maria da Penha durante uma audiência de pensão numa Vara de Família de São Paulo, a equipe de reportagem ouviu juristas para opinarem sobre o tema. Os especialistas comentaram quais são as possibilidades de punição para juízes com este tipo de conduta e também sobre a aplicabilidade da lei que combate a violência contra a mulher. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a Lei Maria da Penha é a terceira melhor do mundo para a violência de gênero. Apesar disso, seu hibridismo de aplicação limitado leva muitos casos a decisões desfavoráveis às mulheres vítimas de violência, desencadeando situações de revitimização. E colocando muitas vezes esta mulher em risco, inclusive, de sofrer feminicídio.

De acordo com a Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman), seis penas podem ser aplicadas a magistrados. Em ordem crescente de gravidade, elas são: advertência, censura, remoção compulsória, disponibilidade, aposentadoria compulsória e demissão. Juízes que ofendem vítimas e abusam da autoridade podem ser denunciados e submetidos a um processo por meio da corregedoria do Tribunal de Justiça e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). As penas podem variar entre o afastamento de suas funções ou aposentadoria compulsória. Apesar da existência das penalidades, elas são pouco frequentes no Brasil. Para o advogado criminalista Augusto de Arruda Botelho, historicamente, casos assim não resultam em punições significativas. “As explicações passam pelo corporativismo natural presente em várias instituições no país.”

A condenação máxima para membros do poder judiciário é questionada por muitos especialistas. Na visão da advogada e ativista Silvia Souza, há uma disparidade em relação à pena de cidadãos comuns. “Sendo o Brasil o terceiro país que mais prende pessoas no mundo, a condenação máxima ser uma aposentadoria compulsória chama bastante atenção e revela mais um traço da desigualdade”. No caso da sanção mais grave, um juiz não poderá mais exercer suas funções no judiciário, mas mantém seu salário vitalício que chega em média a 30 mil reais.

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Aplicabilidade da Lei Maria da Penha

Assim como aconteceu no caso noticiado pelo Papo de Mãe, para os especialistas há um distanciamento entre as decisões no tribunal de violência doméstica e nas varas de família.

A Lei Maria da Penha tem como objetivo principal estipular punição adequada e coibir atos de violência doméstica contra a mulher. É uma das leis mais avançadas no mundo sobre o tema e tem sua aplicabilidade híbrida, o que significa que deveria ser levada em consideração nas varas de família. Por exemplo, se filhos de uma mãe vítima de violência foram expostos a agressões de qualquer caráter (verbal ou físico), esta mãe tem o direito de solicitar que o pai seja afastado do convívio desta família por uma questão de segurança (solicitação de medida protetiva).

No entanto, de acordo com os especialistas ouvidos pela reportagem, o que acontece em algumas situações nas varas de família é uma revitimização dessas pessoas. As denúncias ligadas à Lei Maria da Penha não são utilizadas como elementos importantes para o contexto da decisão. Algumas varas de família tratam casos sem analisar a complexidade das circunstâncias.

Como aconteceu no caso da publicação do Papo de Mãe, a vítima, que já havia sofrido violência doméstica (tendo um inquérito aberto e já precisado de duas medidas protetivas) foi exposta a uma nova situação em que foi submetida ao constrangimento por um juiz e teve suas denúncias questionadas.

Para a presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-SP, Claudia Luna, o sistema de justiça brasileiro precisa ser humanizado. “Em muitos casos, juízes e membros do judiciário que participam de decisões vitais ficam muito distanciados das realidade das vítimas”.

Segundo a advogada Silvia Souza, o judiciário composto por homens, brancos, de classes altas faz com que as decisões não observem as pluralidades. “Sentenças que não protegem mulheres podem colocá-las em novas situações de violência”, completa.

De acordo com o Atlas da Violência 2020, estudo anual produzido pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil —foram 4.519 mulheres assassinadas em 2018, um índice de 4,3 a cada 100 mil mulheres que moram no país. E as maiores vítimas são as mulheres negras, como mostram os dados analisados entre 2008 e 2018, que  evidenciam o racismo no país. Neste período, os homicídios de mulheres negras aumentaram 12,4%.

Para os especialistas, cabe aos juízes avaliar com imparcialidade e neutralidade. Documentos processuais, normas e conceitos científicos devem pautar as decisões. Quando juízos de valor são colocados em pauta, a situação pode ser considerada como violência institucional.

Para Claudia Luna, o Estado brasileiro ainda reproduz diversas estruturas vindas do Brasil inquisitorial. Dados do último Censo do Poder Judiciário realizado em 2013 mostram que 15,6% dos magistrados brasileiros são negros: 14,2% se declaram pardos e 1,4% preto.

O racismo estrutural da sociedade também reflete em decisões no poder judicial. De acordo com Silvia Souza, faltam estudos e políticas de enfrentamento ao racismo. A advogada afirma que, grupos plurais atuando para discutir as disparidades nos poderes do país podem auxiliar nos reparos das desigualdades de gênero e raça dentro das instituições.

Entenda o caso da denúncia feita pelo Papo de Mãe

Na noite da última quinta-feira, o Papo de Mãe publicou reportagem revelando a conduta de um juiz numa audiência de Vara de Família em São Paulo. Sem levar em consideração que um das partes é vítima do ex-companheiro num inquérito que apura violência doméstica, o juiz afirmou que não está nem aí para a Lei Maria da Penha e fez outras afirmações inaceitáveis. Veja abaixo algumas transcrições de momentos retirados da audiência, que durou 3 horas e meia.

Juiz: “Vamos devagar com o andor que o santo é de barro. Se tem lei Maria da Penha contra a mãe(sic) eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”. (Advogadas tentam interromper e ele não deixa)

Juiz: “Qualquer coisinha vira lei Maria da Penha. É muito chato também, entende? Depõe muito contra quem…eu já tirei guarda de mãe, e sem o menor constrangimento, que cerceou acesso de pai. Já tirei e posso fazer de novo”.

Juiz: “Ah, mas tem a medida protetiva? Pois é, quando cabeça não pensa, corpo padece. Será que vale a pena ficar levando esse negócio pra frente? Será que vale a pena levar esse negócio de medida protetiva pra frente?

Juiz: “Doutora, eu não sei de medida protetiva, não tô nem aí para medida protetiva e tô com raiva já de quem sabe dela. Eu não tô cuidando de medida protetiva.”

Juiz: “Quem batia não me interessa”

Juiz: “O mãe, a senhora concorda, manhê, a senhora concorda que se a senhora tiver, volto a falar, esquecemos o passado….”

Juiz: “Mãe, se São Pedro se redimiu, talvez o pai possa…..”

F.: “Eu tenho medo”

(vamos lembrar aqui que F. já sofreu violência doméstica e o juiz insiste numa reaproximação dela com o ex)

Juiz: “Ele pode ser um figo podre, mas foi uma escolha sua e você não tem mais 12 anos”

(No trecho acima, ele insinua mais uma vez culpar a vítima pelas agressões sofridas, reafirmando a declaração de que “ninguém apanha de graça”)

Veja a repercussão do caso aqui.

Maria da Penha, em carta, disse estar estarrecida.

“É estarrecedor que numa Vara de Família no contexto de uma audiência sobre processo de alimentos com guarda e visitas aos filhos um Juiz faça declarações tão constrangedoras e vexatórias como essa! Para além do lamentável, a questão nos causa indignação e, ao mesmo tempo, agrava a preocupação que eu já trago desde o momento que eu iniciei a minha militância. Da violência doméstica à violência institucional, após 37 anos do meu caso e dos 14 anos da Lei 11.340/06, observamos que ainda falta sensibilidade jurídica, consciência cidadã e respeito por parte de muitos magistrados no sistema de justiça no Brasil. Destaco que há sim profissionais desse mesmo sistema que são profissionais humanos, coerentes, justos e leais à causa dos direitos humanos das mulheres.”

Assista ao Papo de Mãe sobre violência doméstica


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