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Amanhã há de ser outro dia! Fui abusada pelo pai do amigo do meu filho

A professora universitária Letícia Menegon revela neste depoimento os detalhes do assédio que sofreu e fala da impunidade

Letícia F. Menegon Publicado em 07/06/2022, às 10h20

O filho de Leticia era o melhor amigo do filho do assediador
O filho de Leticia era o melhor amigo do filho do assediador

* Nota do Papo de Mãe: os nomes usados neste texto são fictícios para preservar a identidade dos envolvidos, já que o caso ainda corre na justiça

Maio de 2018. Era dia de comemoração do 11º aniversário do João, melhor amigo do meu filho Tom. Os pais dele, Karen e Renato, a vida me apresentou. Não eram minha opção de amizade, mas a relação entre as crianças nos aproximou e a convivência era frequente.

 A festa acontecia dentro do apartamento dos pais de João, localizado em uma das áreas mais nobres da zona sul da capital São Paulo. O churrasco, na varanda gourmet, e as brincadeiras garantiram muita diversão aos convidados. Eu mesma, me divertia muito.

Determinado momento, fui usar o lavabo. Alguém batia incessantemente na porta. Eu pensei: mas que criança chata! Ao abrir a porta, fui surpreendida pelo Renato, pai do João, o aniversariante, que subitamente segurou meus braços e me empurrou contra a parede daquele apertado recinto. Tentava me beijar à força, esfregando seu corpo contra o meu. Eu pedia para ela parar, mas ele me ignorava, usando de sua força para me conter. Foi quando lembrei de um depoimento que ouvi na televisão quando ainda era adolescente: “se tentarem lhe estuprar, diga vem meu bem. O sujeito sai correndo”. Foi então que não mais resisti ao beijo. Neste exato momento, ele deixou de usar a força com que segurava meus braços e prensou meu corpo contra a parede. O empurrei e escapei. Trêmula, ao sair do banheiro, encontrei uma sala repleta de crianças brincando. Lá estava meu filho, correndo de um lado para o outro. 

Diante da situação, não reagi. Uma colega percebeu minha aparência de assustada, me chamou para o quarto do aniversariante, onde poderíamos conversar com calma. Chorei, expus o que aconteceu. Ela me disse que passara algo semelhante em outra festa de aniversário. O Renato havia passado a mão na bunda dela. Depois de muita reflexão, decidimos ficar em silêncio. Era uma festa de criança e as consequências de qualquer exposição do ocorrido poderiam ser devastadoras.

Continuei na festa, como se nada tivesse acontecido. Me isolei, pensativa, tentando entender o que aconteceu. Liguei para uma amiga. Contei o que havia acontecido. Sua reação inicial foi uma brincadeira. Mas depois de entender que eu estava falando sério, pediu que eu mantivesse a calma.

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Eu e meu filho fomos embora da festa um tempo depois do ocorrido. Eu queria revidar. Mas a responsabilidade para com os meus filhos me impedia de qualquer reação àquela violência que eu havia passado. Os primeiros dias após o ocorrido foram de horror. Meu mundo psíquico e emocional ruiu. E eu comecei a me deparar com o que estava por vir, quando contei o que havia acontecido ao meu então marido. A primeira pergunta que fez quando relatei o que aconteceu naquela festa foi: “O que você fez para ele fazer isto com você?”. A partir daquele dia tive de lidar com a dor de uma tentativa de estupro e com o início do luto do que seria, definitivamente, o final do meu casamento. A reação inicial dele foi a pá de cal num casamento de 17 anos que já não andava bem.

Passaram-se 6 meses de um processo interno de compreensão do que havia acontecido. Saí do estado de choque. Foi, então, que decidi contar tudo para meu filho, porque seria a única forma dele parar de conviver com o melhor amigo João. E, eu, estaria livre dos contatos com aquela família. 

O Tom tinha 11 anos. Era muito novo, eu sei. Quando contei, ele ficou em silêncio. Pensou muito. Sentado ao meu lado disse: “Mãe, não dá mais para eu ser amigo do João”. Eu assenti, com um orgulho ímpar daquele rapazinho que já se mostrava ser um grande homem. Ele entendeu, em seu jovem mundo, a minha dor e a gravidade do ocorrido.

Um tempo depois comecei a fazer terapia e me fortalecer internamente. Decidi denunciar o agressor. Era o começo do enfrentamento de um crime que constrange a vítima. O Renato precisava entender que a ação dele teria um balanço de consequências. 

A primeira fase, de inquérito policial, foi uma decepção. Incrivelmente, meu processo foi encerrado pela delegada sem sequer ouvir minhas testemunhas. Estranho? Comecei a entender, na prática, o que era enfrentar um homem branco, rico e poderoso. Mas não me deixei abalar. Contratei a Claro e Serrano Advocacia, um escritório feminista super combativo. O resultado foi: o Ministério Público notificou a delegacia para que minhas testemunhas fossem ouvidas. Em seguida, o Renato foi indiciado, pelo Ministério Público de São Paulo, por crime de importunação sexual, decretado em 24 de setembro de 2018. 

Eu comemorei o indiciamento! Havia fatos suficientes nos depoimentos, além de documentos, para que ele respondesse criminalmente. 

Mas o escritório de advocacia olhou este indiciamento com certa cautela, comportamento que só fui entender quando recebi a decisão do Juiz do caso, que absolveu sumariamente o Renato.

A promotora de justiça criminal denunciou o Renato por crime de importunação sexual, crime que, na época, ainda não existia. É um princípio basilar do direito penal que os crimes editados depois da data dos fatos não podem retroagir em desfavor do réu. 

Ao questionar a promotora se ela recorreria da decisão do juiz, a resposta que recebemos foi: “Em cumprimento à determinação da Dra. XXXXX, Exmo.1Yº Promotor da Vara Criminal, informo que a Doutora não recorrerá porque entende que o juiz está correto.” (transcrição literal do e-mail do gabinete da promotora).

Depois de muito refletir, e ainda em choque, ficam algumas questões que não calam dentro de mim: como uma promotora de justiça denuncia o réu por um crime que não existia na época? Por que não denunciou o Renato por crime existente no período, já que observou, no processo, fatos relevantes para a denúncia? Como pode ela denunciar o réu de um crime que ela mesma sabia que daria ao réu a absolvição sumária? E ainda concordava que assim o fosse? Seria um grave erro cometido por ela, que não quis corrigir? Seriam suas decisões, desde o crime escolhido à não recorrer à sentença do juiz, resultado de tráfico de influência? 

Meu palpite é que tem mais caroço neste angu do que eu imaginava. 

Não é fácil conseguir, dentro de uma estrutura judicial machista, numa sociedade que culpa a mulher pelos crimes cometidos por predadores sexuais, uma denúncia contra o réu. A atuação do Ministério Público de São Paulo, representado pela promotora do caso, mostra o descaso com que nós, vítimas de crimes sexuais, somos tratadas. Se a promotora tivesse o mínimo de empatia e seriedade em sua denúncia, jamais utilizaria de seu cargo para exercer o que chamo de deboche institucional: lhe dou rosas com uma mão, e a tiro com violência, com a outra. 

O meu caso ilustra um dos grandes motivos pelos quais as vítimas desistem da denúncia: o descaso, a impunidade, o deboche institucional. Tenho certeza de que esta servidora do MPSP jamais entendeu a dor de uma agressão sexual. Também não entendeu o quão sério é sentar-se em sus cadeira. Não se brinca com a dor alheia.

Mas, enquanto os homens exercem seus podres poderes, eu ressurjo das cinzas e digo: apesar de você(s), amanhã há de ser outro dia! Seguirei firme na luta contra as instituições, contra funcionários públicos que não zelam pelo trabalho que exercem, contra os predadores sexuais. Por mim e por todas!

*Letícia F. Menegon é professora universitária

**Este texto não reflete necessariamente a opinião do Papo de Mãe

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