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Afazeres domésticos e as crianças

O psicanalista Paulo Bueno, colunista do Papo de Mãe, nos traz um papo de pai sobre as aventuras domésticas com o filho Pedro, de 5 anos

Paulo Bueno* Publicado em 01/06/2021, às 15h00

Pai e filho na faxina
Pai e filho na faxina

Em vias de brotar musgos, decidi dar um tapa no banheiro. Detergente, cândida, desinfetante e balde me auxiliaram. Mas faltou o essencial. Nos primeiros meses da pandemia era uma festa. Todas as vezes que eu ia lavar o banheiro, Pedro logo dobrava a barra da calça, pegava sua esponja e colocava um par de chinelo – aqui cabe uma explicação: ele só anda de meias pela casa, o chinelo só é usado em ocasiões muito especiais.

O psicanalista Paulo Bueno
O psicanalista Paulo Bueno

Quando eu ia cozinhar, era ele quem colocava os temperos, lavava as batatas e batia o bolo com a colher de pau. Era assim, sempre ao som de Barbatuques, Palavra Cantada ou Chico Buarque. Os dias passaram, a pandemia permaneceu, a sujeira se acumulou no vidro do box, mas a boa vontade do garoto em me “azudar” esmoreceu.

Em um dado momento, ali no comecinho – quando não sabíamos quanto tempo duraria o distanciamento social (e sabemos?) – ele decidiu que aprenderia a lavar louça. Ensinei. Me arrependi. Explico: certo dia, Pedro me pediu um copo para beber suco, sugeri que usasse aquele em que havia tomado água. Recusou-se, falando que gosta de um copo para cada coisa. Exaltado, perguntei-lhe quem lavaria toda aquela louça que ele estava sujando. Respondeu-me, bem assim, curto e grosso, “eu, papai”. Calei-me. Cessaram os argumentos.

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De volta ao banheiro, quase no fim da tarefa, constatei que esfregar paredes sem a companhia do filho é chato. Uma vez, escutei de alguém (com mais experiência) que a faxina é uma espécie de terapia, um exercício que limpa a casa e a alma. De minha parte, prefiro o conforto do divã e não faço questão de assepsia subjetiva.

Por falar em divã, lembro-me de uma situação recente em que eu acabara de arrumar a cama do Pedro, que observou com paciência meu empenho em deixar o lençol milimetricamente estendido. Assim que acabei, ele se aproximou sorrateiro e começou a pular e gargalhar, talvez confundindo a cama com um trampolim. Ensaiei uma bronca, mas detive-me. Pensei em quem estaria mais equivocado: o menino que salta ou o adulto que se ilude, acreditando que uma cama se manterá intacta até o fim do dia (dia de domingo, em confinamento)? Ademais, sequer sou um adepto da doutrina que vê na cama arrumada uma instituição essencial.

Para ser sincero, vejo nessa empresa – de fazer a cama ao acordar, para logo a noitinha desfazer – um gesto semelhante ao de Sísifo. A cada lençol estendido, uma pedra rolando montanha abaixo. E na manhã seguinte a tarefa se repete e se repete. É sabido que Sísifo recebeu esse castigo por enganar os deuses. Eu sou o Sísifo que empurra a pedra, mas também o deus ludibriado pela criança que promete que “foi a última vez”. Pensava sobre isso quando escutei sua voz: - Papai, eu já acabei de assistir meu desenho e vim te azudar.

Descalço, segurava o chinelinho em suas mãos. Em silêncio e com o ar de gravidade que a situação exigia, entreguei sua esponja. Em seguida, fui buscar a caixinha de som, para escutarmos Barbatuques, durante a minha terapia sem divã. Há fazeres domésticos que se transformam em leves pedrinhas que rolamos pelas montanhas quando estamos em boa companhia.

*Paulo Bueno: Pai do Pedro, de 5 anos. Psicanalista, mestre e doutorando em Psicologia Social pela PUC-SP e docente do Instituto Gerar Psicanálise, Perinatalidade & Parentalidade.

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