Artigo exclusivo da Promotora de Justiça e Coordenadora do Núcleo de Gênero MP/SP, Valéria Scarance, para o Papo de Mãe. Porque temos que falar sobre a violência do machismo para que isso seja combatido
Valeria Scarance* Publicado em 03/02/2021, às 00h00
Futebol, masculinidades e violência caminharam juntos desde sempre. Em campo, há jogadas truculentas, pênaltis, faltas, cartões vermelhos. Nas ruas, há duelos entre torcidas que resultam em destruição e morte. Em casa, há relatos de violência contra mulheres.
No dia 31 de janeiro, mais um retrato dessa violência: em São Paulo um empresário matou a esposa com inúmeras facadas porque se irritou quando ela, palmeirense, comemorou a conquista da Copa Libertadores.
Além de causar indignação, o fato traz uma reflexão: em que medida jogos de futebol aumentam o risco de morte para mulheres?
Na obra “Não é só um jogo: futebol como canal para a violência”, Bernardo Ostrowski coletou pesquisas que demonstram a escalada de violência em partidas de futebol americano: elevação de 10%da violência doméstica em situações de derrota “inesperada” do time da casa (Card e Dahl, 2011); aumento de violência nas ruas, como assaltos, vandalismo, crimes por abuso de álcool, na cidade sede de partida de jogos universitários (Ress e Schnepepel, 2009); aumento de 28% de relatos de estupros de jovens (Lindo, Simiski e Swensen, 2018).
No Brasil, levantamento realizado pelo mesmo autor constatou um aumento de óbitos heterogêneo em dias de jogos: enquanto a emoção negativa (pela derrota do time, por exemplo), provoca o aumento de mortes de homens nas ruas, para as mulheres há aumento de violência dentro de casa.
A casa sempre foi e continua sendo o lugar mais perigoso para mulheres, mas a causa dessa violência não é o futebol.
Homens são violentos porque aprenderam a ser violentos. Da mesma forma que se aprendem regras cotidianas, aprende-se a ser homem e ser mulher, com espaços, poderes, permissões e restrições. São construções culturais repassadas por gerações escondidas sob um determinismo biológico.
Para o homem, tolera-se e incentiva-se certa agressividade, sinal de virilidade. Socialmente, a emoção masculina é identificada como fraqueza – “menino não chora” ainda dizem muitos pais a seus filhos. Esse conjunto de crenças e comportamentos impostos a homens é chamado de “Caixa do Homem” e sustenta que a masculinidade está baseada em força física, sucesso profissional, conquistar mulheres, não demonstrar fraqueza. Como resultado, apenas 20% dos homens tiveram exemplos práticos de como lidar com emoções, já que 70% dos homens foram ensinados na infância e adolescência a não demonstrar fragilidade, aponta a pesquisa O Silêncio dos Homens (Papo de Homem).
A educação pelo exemplo familiar tem um papel determinante para se reafirmar ou descontruir o machismo: 64% dos jovens que praticam violência presenciaram violência contra suas mães (Violência contra a mulher: o jovem está ligado?, Instituto Avon).
Mas não é só o exemplo que ensina.
Não tolerar e não se omitir diante de discriminação ou desrespeito às mulheres são posturas que podem modificar o padrão de pessoas. Até mesmo um bate papo pode produzir bons resultados: 54% de homens modificaram atitudes machistas em razão de um diálogo com pessoas próximas (O papel do homem na desconstrução do machismo, Instituto Avon).
A causa da violência contra a mulher não está no futebol, mas na construção social que incentiva e banaliza a violência. Em terras de machismo estrutural e estruturante, a violência mora ao nosso lado. Mulheres precisam ser respeitadas, acolhidas e protegidas não só pelo Sistema de Justiça, mas por toda a sociedade.
Para se evitar a morte de mulheres é preciso abrir os olhos, entender que nenhuma violência é banal. A culpa não é do futebol, a culpa não é da bebida, do desemprego, da vítima ou mesmo da pandemia pela COVID19. A culpa é – única e exclusivamente – daquele que elegeu uma parceira como saco de pancadas.
*Valeria Scarance é Promotora de Justiça, Coordenadora do Núcleo de Gênero MPSP, Mestre e Doutora em Processo Penal e Professora da PUC-SP