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O direito à infância

No ano passado, por causa da pandemia, foram 5,5 milhões de brasileiros desta faixa etária sem atividades escolares

Ana Paula Yazbek* Publicado em 10/03/2021, às 00h00 - Atualizado às 13h08

Descompasso no Brasil: falta proteção à infância para crianças serem simplesmente crianças
Descompasso no Brasil: falta proteção à infância para crianças serem simplesmente crianças

A ideia da infância como um período essencial ao desenvolvimento, protegido e valorizado pela sociedade, é recente na história da humanidade. Na cultura ocidental, somente no século XVII, com o Iluminismo, os adultos passaram a dar mais atenção para essa fase da vida e a tratá-la com mais cuidado. Os primeiros Estatutos da Criança, que determinam seus direitos e metas para o desenvolvimento pleno foram criados entre os séculos XIX e XX, sendo em 1959, aprovada pela ONU (Organização das Nações Unidas) a Declaração Universal dos Direitos da Criança, que contempla direitos como igualdade, proteção, amor e compreensão.

Apesar deste reconhecimento, a realidade dos dias atuais revela o quanto estamos distantes de universalizar um tratamento de dignidade à infância. Um estudo lançado pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) aponta que o Brasil tem quase 1,4 milhão de crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos fora da escola. No ano passado, por causa da pandemia, foram 5,5 milhões de brasileiros desta faixa etária sem atividades escolares. Somado ao alto índice de mortalidade infantil nas famílias de baixa renda e à necessidade de trabalho infantil para composição de recursos, certamente as possibilidades de superação de desigualdades sociais e econômicas do nosso país são dificílimas, quase inexistentes. Sendo evidentes as negativas ao direito à infância à boa parte de nossa população.

Para além disso, quero chamar atenção para a adultização que atinge a infância das crianças de famílias com melhores condições financeiras, e que também revela um descompasso com os direitos à infância, preconizados nos documentos oficiais.

O que vem a ser essa adultização da infância? Em termos práticos é estimular, tratar, ou dar para a criança acesso ao mundo característico de uma vida adulta. Restringir a sua rotina semanal a atividades rigorosamente agendadas, sem tempo livre para brincar. Oferecer jogos eletrônicos com conteúdos inadequados para a idade, assistir filmes ou publicidades com temáticas adolescentes ou adultas, partilhar e adquirir os mesmos objetos de consumo, são exemplos de desrespeito ao desenvolvimento da criança, pois a coloca num mundo de “equivalência” ao adulto, o qual não tem condições de suportar.

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Lembro-me de duas experiências marcantes na infância dos meus filhos, Marina e Pedro. Aos sete anos, levamos a Marina para uma sessão de fotos no estúdio do meu irmão, Maurício. Durante anos, ela e Julia, sua prima, quatro anos mais velha, brincaram de fazer desfiles nos almoços de família, quando Julia, produzia a Marina com diferentes “looks” com lenços e acessórios das avós. E, neste dia, a brincadeira foi registrada em fotos muito divertidas, pela então namorada do meu irmão que era fotógrafa profissional.  As fotos ficaram ótimas e, minha mãe, sabendo que Marina adorava cantar e encenar histórias, separou algumas para uma seleção de atores mirins para a peça do Peter Pan, que ocorreria em São Paulo. Fomos chamadas para a primeira etapa presencial. Recebemos uma ficha explicando quais seriam as regras, caso a criança fosse escolhida para a peça: ensaios durante as tardes, apresentações duas noites por semana e aos finais de semana, o que implicaria na mudança de turno da escola.

Passamos horas numa fila aguardando sua audição. Sentia que enquanto eu e Marina estávamos ali, vendo tudo com estranhamento, algumas mães e crianças estavam tensas, pois já estavam na terceira ou quarta experiência de seleção do mês. Muitas estavam eufóricas, já projetando uma carreira para o filho, outras aborrecidas pelo fato das crianças não estarem animadas a participar. Em vários momentos perguntei para Marina se ela queria continuar ali, pois eu não estava nada confortável com a situação e nem com o possível compromisso que assumiríamos, caso ela passasse na seleção. As horas foram passando e o que parecia uma brincadeira, começou a cansar, até que finalmente ela foi chamada. Quando saiu, uma pessoa da seleção avisou, de uma forma gentil, que ela não seria escolhida, mas que poderia ser eventualmente chamada. Assim que ouviu, Marina deu um pulo e disse: vamos embora!

Com o Pedro, desde os seis anos o levamos ao clube para jogar futebol. Ele passava horas brincando de futebol na escola, em casa, no prédio, e achamos interessante que começasse a treinar. Como a maioria dos meninos de sua idade, ingressou e foi aprovado no futsal. Recebemos uma espécie de contrato de participação, com diversos tópicos. O que mais nos chamou atenção era a prioridade que a família deveria dar aos jogos e campeonatos, em detrimento a viagens, festas e comemorações familiares. De repente, aquelas mães ansiosas e tensas por um futuro promissor para sua criança deram lugar aos pais “empresários” e “técnicos”, alguns apelidando os próprios filhos com os nomes dos jogadores do time profissional. Ocorre que, diferentemente da Marina, Pedro gostava muito de treinar e competir, era realmente habilidoso e demorou alguns anos para se desiludir com as peneiras e os jogadores apadrinhados.

Trago esses relatos para que possamos refletir sobre os efeitos possíveis do comprometimento de crianças com atividades que desconsideram a ludicidade da infância como fator primordial. Quando o teatro, o esporte, a dança, a música ou a culinária são colocadas como atividades em que as crianças precisam ter um bom desempenho, ou são designadas e determinadas pelos adultos, como projeção de seus projetos pessoais nos filhos e de ideais sociais, podem trazer estresse e ansiedade. Vale nos atentarmos sobre essa aceleração da infância para a vida adulta, com cobrança e tomada de decisões de um mundo adulto, pois definitivamente não traz benefícios ao desenvolvimento.

Será que em algum tempo conseguiremos transformar as infinitas atividades esportivas e culturais em propostas mais lúdicas, menos voltadas a performances? Será que conseguiremos oferecer a todas as crianças direito ao brincar e à infância?

Ana Paula Yazbek

*Ana Paula Yazbek é pedagoga formada pela Faculdade de Educação da USP, com especialização em Educação de Crianças de zero a três anos pelo Instituto Singularidades; iniciou mestrado na FEUSP em 2018 e está pesquisando sobre o papel da educadora de bebês e crianças bem pequenas.

É sócia-diretora do espaço ekoa, escola que atende crianças de toda Educação Infantil (dos 0 aos 5 anos e onze meses). Além de acompanhar o trabalho das educadoras, atua em cursos de formação de professores desde 1995 e desde 2002 está voltada exclusivamente aos estudos desta faixa etária.

Assista ao programa do Papo de Mãe sobre brincar:

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