Papo de Mãe
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De onde a gente veio? Histórias que meu pai contava enquanto preparava o jantar

O escritor Plinio Camillo, pai de Beatriz, escreve sobre a sua negra origem baseado em fatos irreais. Um papo de pai

Plinio Camillo* Publicado em 16/01/2021, às 00h00 - Atualizado às 11h52

O escritor Plinio Camillo é pai de Beatriz
O escritor Plinio Camillo é pai de Beatriz

Feijão ficou de molho desde manhã. Meu pai chegou. Trocou de roupa e dividiu as tarefas. Paulo e Paula escolheriam o arroz. Eu poderia cortar em cubinhos a cebola, picar o alho e fatiar a salsinha e cebolinha. Depois lavar a salada das vezes. Enquanto ele temperava os bifes.

Viemos da África!

Qual delas? Não sei …

Teve uma vez que não dormi quando o meu pai contou a vida do Zumbi de Palmares. Minha irmã chorou na hora que o Zumbi foi preso e morto. Triste pra caramba

Mas com certeza de um lugar que forjaram pessoas fortes, determinadas e não se envergavam facilmente.

Veja também:

Viemos forçados, trancafiados, sequestrados para cá.

Imagine que a primeira de nós, que vou chamar de Paula, fazia parte de uma tribo, de uma parte da África. Seu povo era nômade, andavam sempre à procura de bons lugares para viver. Com água e fartura de animais.

Paula toda cheia de si porque o nome estava na história. Todo mundo sabia que ela era o xodó do meu pai. O Paulo era da minha mãe. E para mim sobrava a Tia Junia, que fazia um tempão que não aparecia

Paula, como todos ali, tinha a obrigação de cuidar dos menores, coletar a comida e caçar. Todos faziam de tudo.

Protegiam.

Lutavam. Não por natureza, mas para sobreviver.

Descem um morro

Sobem outro morro

Andam

Descem um morro

Sobem outro morro

Andam

Descem um morro e o povo constrói suas casas bem perto de um rio, onde poderiam pescar, caçar e aliviar a sede.

Tempos tranquilos.

Tempos quentes.

Os últimos tempos felizes.

Meu pai colocou o feijão no fogo. Panela de pressão e, como sempre, disse para a gente ficar longe , pois se acontecesse algo, estaríamos seguros. Verdade! A panela de pressão da Dona Assunta explodiu e fez um rombo enorme no teto dele. Fui, vi. Esbagaçou o fogão.

No meio da noite, pessoas estranham invadem.

Gritos

Choros

Medo

Cheiro de morte levanta.

Paula leva os mais novos para longe dali.  Para o lado onde poderiam ficar em segurança. 

Temia que aquele outro povo os pegassem para comer ou algo pior!

Estando todos seguros, Paula retorna para o meio da luta.

Vem com medo.

Vem cm raiva.

Vem com força.

Vem com desespero.

Combate como uma mulher que cuida dos seus.

Arremessa as lanças

Atira pedras

Morde

Soca

Grita.

O jeito do meu pai de fazer o arroz era: Primeiro refogar a cebola e o alho até que estejam transparentes. Juntar o arroz até que ele fique “sequinho e brilhante”.  Depois juntar água: para cada xícara de arroz, duas de água fervida. Dosar no sal e nos outros temperos. Misturar bem. Abaixar o fogo e deixar cozinhar até o arroz secar. Pronto

Batalha que vai até o amanhecer. O povo de Paula está sucumbindo, poucas se mantém em pé.

Paula ora pelos seus orixás.

Pede.

E recebe: todas as fêmeas da terra, dos céus e do mar vem em auxílio do povo de Paula.

A luta retoma com força.

Mas o outro povo é muito mais numeroso.

Correr não é covardia.

Correr é procurar outro lugar para lutar.

… E o feijão começou a ferver. Meu pai abaixou o fogo.

O povo de Paula percebe que era hora de fugir. Os que ainda estavam soltos correram do lado oposto ao que estavam os pequenos.

Forte.

Chorando.

Gritando.

Paula era uma das últimas. Queria ainda brigar. Porém tinha que pensar que sozinha não conseguiria e tudo ficou …

A manhã escureceu.

Amarrada

Atada

Seus pés presos a pés de outro. E este a outro. Fazendo uma longa fileira.

Andaram dias. Paula fica em silêncio. Não fala, não chora e nem entende o que as pessoas falam.

De quando em quando ela vê de longe, alguém do seu povo. Mas não tem nada para dizer e nem quer perguntar.

Andam muito tempo. Sois e Luas.

Comem pouco.

Vê alguns pés ficarem pelo caminho.

Houve choros.

Gritos.

Paula não chora, mas quer, muito. Talvez o medo vá embora.

Andam muito tempo. Sois e Luas.

Comem pouco.

Vê alguns pés ficarem pelo caminho.

Houve choros.

Gritos.

Andam até que vêem um rio muito grande. O maior que Paula já havia visto. Nem dá para ver a outra margem. Outros que estão atados chamam aquilo de mar. Paula chama de terror.

Colocam eles em uma casa de pedra.  Também grande. Sem luz e com cheiros ruins.

Mais tempo ali e o que cresce somente é o medo. Tem hora que são levados para o sol. Para um banho. Para comer pouco. Algumas são abusadas. Triste.

Meu pai preparava o bife à milanesa conforme a receita de minha avó Paulina: Numa tigela pequena, quebrava um ovo de cada vez e transferia para um prato fundo. Juntava a água e temperava com o alecrim, sal e pimenta calabresa seca. Batia com um garfo apenas para misturar as claras com as gemas. Num prato raso, colocava a farinha de rosca, em outro a farinha de trigo e temperava com uma pitada de sal. Empanava-os e fritava com cuidados..

Paula, seu povo e os outros povos, são de pessoas fortes, orgulhosas e guerreiras. Mas aquela não certeza do que viria, destruía toda a vontade. 

Paula, seu povo e os outros povos somente pensavam em viver. E ficavam dispostos a fazer qualquer coisa para isso.

Horror teve quando viu, pela primeira vez, uma pessoa diferente do seu povo e dos outros povos. Pessoa cheia de pelo no rosto, com a pele rosada e um olhar de desprezo.

Outros atados chamaram ele de Portugueses.

…minha mãe chegou. Sorriu e a gente estava pregado na história do meu pai.

Ela sabia que existiam, mas nunca tinha visto de perto. Falam outra língua que ela não entendia.

Um banho

Uma refeição

E um português diz uma coisa que ela não entende, joga uma água na cabeça e fala: Paula.

Tempos depois ela percebeu que esse seria o seu nome nesta outra vida.

Fila longa. Gritos. Queimam a pele da Paula com ferros quentes. Passam uma massa que esfria e alivia.

Andam

Andam

Marcha forçada até que entram em uma casa de madeira que estava em cima do rio grande. Outros atados chamaram aquilo de navio. E outros, mais chorosos, de túmulo.

Andam

Gritaram

Chicoteiam

Dentro, separam os homens das mulheres.

Paula fica junto com outras. Todas seguram o choro. Seguram o horror.

Seguram-se.

Passa tempo.

E o navio, o túmulo, balança.

Muito 

Forte.

Passa tempo 

Não balança mais.

De tempos em tempos uma das mulheres era arrastada para um outro lugar com os portugueses. Depois ela voltava, muito machucada e gritando. Ou machucada chorando. Ou machucada muda.

Um momento, Paula e os outros são levados para a parte de cima da casa.

Sol forte

Vento bom

Tenta ver longe para encontrar uma terra. Só água.

Paula fica mais muda.

Meu pai experimentou o feijão. Bom. Arroz solto. Bifes prontos e todos fomos lavar as mãos.

Os portugueses  separam alguns homens e mulheres para limpar o lugar.

Outros tem que dançar.

Porém, de verdade, eles judiam.

Batem

Socam

Espezinham.

Paula fica com desejo de morte. 

Triste, corre para pular no mar e é impedida.

Atam as mãos e as pernas dela.

Passam tempo. Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água. Alguns morrem …

Passam tempo. Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água. Alguns se matam…

Passam tempo. Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água. Os portugueses não deixam alguns morrerem …

Passam tempo. Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água.  Os portugueses impedem que alguns se matem …

Passam tempo. Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água. Alguns desistem de chorar …

Passam tempo. Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água. Alguns desistem de morrer …

Passam tempo. Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água. Alguns desistem …

Passam tempo. Choros. Pouca comida. Gritos. Pouca água. Alguns…

O navio para.

Chicoteados são obrigados a sair. A luz forte cega. Tempos depois, Paula se vem em outra casa de pedra.

Outros portugueses que falam uma língua diferente daqueles portugueses.

Toma banho

Comem

Algumas feridas são tratadas.

Só meu pai falava. Apesar da comida estar boa. A gente estava meio engasgado. Sim, sou negro de cor.

Paula aprendeu um pouco da língua do chicote português. Não vacila mais. Antes do primeiro estalo, já está de pé.

Antes do segundo, abaixa a cabeça.

Antes o terceiro, recua três passos para trás.

Outros portugueses chegaram perto. Gritaram, xingaram, mexeram nela. Bateram em suas costas. Chacoalharam.

Paula, a primeira de nossa família, que foi sequestrada e escravizada.

Como sempre, a Paula chorou.

*Plinio Camillo é escritor e pai de Beatriz. Também é autor de :
NOTAS DE ESCURECIMENTO – Contos de Escrevivência – Colli Books
LUIZA – romance infanto-juvenil sobre uma negrX escravizada – Editora Kazuá
OUTRAS VOZES – coletânea de contos sobre o negrX escravizado no Brasil – 11Editora
O NAMORADO DO PAPAI RONCA – romance infanto juvenil – ProAC 2012 – Editora Prólogo – Selo Mundomundano
Entre outros …

Blog: Alfarrábios – pliniocamillo.wordpress.com/
Notas de Escurecimento – Gerações – https://www.youtube.com/pliniocamillo

Confira a entrevista do Papo de Mãe com as autoras de "Superblack, o Poder da Representatividade":

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