Papo de Mãe

Os impactos do isolamento social nos crimes de violência sexual contra crianças e adolescentes

A análise aponta, portanto, para um provável aumento da subnotificação desses casos de estupro na pandemia. 

Roberta Manreza Publicado em 03/12/2020, às 00h00 - Atualizado às 14h53

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3 de dezembro de 2020


O aumento dos casos não denunciados de violência sexual na pandemia.

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O Ministério Público do Estado de São Paulo, o Instituto Sou da Paz e o Fundo das Nações Unidas para a Infância trabalharam conjuntamente com objetivo de verificar possíveis impactos do isolamento social na ocorrência e na notificação da violência sexual contra crianças e adolescentes, com foco na análise dos casos de estupro de vulnerável e acabam de  divulgar um estudo bem aprofundado do tema.

A análise dos dados dos boletins de ocorrência de estupro de vulnerável registrados pela Polícia Civil do estado de São Paulo aponta para uma queda brusca no número de casos registrados de estupros de vulnerável no período entre 24 de março e 30 de junho de 2020, comparado com o mesmo período em 2019 – uma queda de 28% no número de estupros comunicados, em relação a 2019. Uma comparação mês a mês mostra uma queda de 40% em abril e maio, também em relação a 2019.

Mas estupros de vulnerável, a análise também mostra, são crimes predominantemente domésticos – na média histórica, quase 4 em cada 5 registros desse crime indicam como local de ocorrência a residência da vítima. As medidas de distanciamento social adotadas para prevenir a transmissão do novo coronavírus, que diminuíram a circulação pela cidade, mantiveram crianças mais tempo em casa. Aumentou o tempo que as crianças passam dentro de casa, e é dentro de casa que elas são vítimas de violência sexual.

A análise aponta, portanto, para um provável aumento da subnotificação desses casos de estupro na pandemia.

Toda criança tem direito a uma infância segura. Tem direito de ser criança, brincar, aprender e ser protegida contra qualquer forma de violência. Durante a emergência de saúde pública causada pelo novo coronavírus isso ficou mais difícil, mas por isso mesmo ainda mais crucial. A violência sexual deixa traumas para a vida toda.

“O levantamento demonstra que o estupro de vulnerável acontece em casa e é praticado, em regra, por parentes. Além disso, com a pandemia, constatou-se uma queda de 15% nos boletins de ocorrência  justamente porque as crianças e adolescentes estão vivendo em casa, afastadas das escolas, sob controle dos abusadores”,  explica Valéria Scarance, promotora de Justiça e coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público do Estado de São Paulo.

O Estudo

Introdução

Durante a pandemia de Covid-19, mudanças no comportamento criminal e na incidência de violências foram observadas em diversos contextos e países, provavelmente relacionadas à situação de isolamento social adotado como meio de contenção da pandemia.

No Estado de São Paulo, a quarentena entrou em vigor no dia 24/03/2020 e durante o primeiro semestre de 2020(1) pôde-se observar seu efeito na dinâmica criminal. Por um lado, crimes patrimoniais sofreram forte redução no período e, por outro, crimes contra a vida, sobretudo homicídios dolosos, voltaram a crescer, rompendo a tendência de redução dos anos anteriores. Os crimes sexuais de estupro, cuja notificação vinha ascendendo nos últimos anos especialmente em razão dos registros de estupro de vulnerável, apresentaram, por sua vez, redução significativa no primeiro semestre de 2020 em comparação ao mesmo período do ano anterior (INSTITUTO SOU DA PAZ, 2020).

Nesse contexto, é relevante alertar para o risco de aumento da subnotificação dos crimes sexuais, sobretudo contra as pessoas mais vulneráveis a este tipo de abuso. As pesquisas de vitimização indicam que esses casos já contam normalmente com baixíssima notificação, de modo que os registros policiais sinalizam apenas para a ponta de um iceberg de violações que ficam ocultas nas estatísticas oficiais.

(1) Decreto estadual 64.881/2020, que determinou o fechamento do comércio com atendimento presencial.

A violência sexual pode ser definida como qualquer ato sexual ou tentativa praticado por meio de coação, independentemente do grau de força que envolva a coação, contra a sexualidade de uma pessoa, praticado pelo agressor independentemente de sua relação com a vítima e em qualquer circunstância. A despeito da dificuldade de aferir a extensão do problema, pesquisas em diferentes países indicam que a agressão é prevalente entre mulheres, adolescentes e meninas, mas também atinge meninos, sobretudo entre as crianças. Pode ocorrer em ambientes públicos ou privados e é praticada por agressores majoritariamente do sexo masculino. É um dos tipos de abuso frequentes no ambiente doméstico, cujo autor tende a ter algum vínculo com a vítima, como pais, padrastos ou conhecidos da família, e provoca graves consequências para a saúde física e mental das vítimas ao longo de suas vidas (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE, 2002; SVS/MS, 2018).

Assim, na pandemia acentua-se a preocupação com o monitoramento e atendimento dos crimes sexuais contra vulneráveis ocorridos durante o isolamento social, uma vez que o confinamento das pessoas no ambiente doméstico vem aumentar ainda mais a invisibilidade do problema. No Brasil, segundo balanço do Disque 100, que funciona no âmbito do Programa Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, estão entre as violações mais frequentes contra crianças e adolescentes a negligência (72,7%), a violência psicológica (48,8%), física (40,6%) e sexual (22,4%) (UNICEF, 2020).

Com a população sem acesso às interações comunitárias e às instituições que poderiam funcionar como uma rede de proteção, a dificuldade de identificar a vitimização, sobretudo de crianças e adolescentes, tende a aumentar, e seu enfrentamento resta ainda mais prejudicado.

Frente à redução dos registros observada desde o início da pandemia, o Ministério Público do Estado de São Paulo, o Instituto Sou da Paz e o Fundo das Nações Unidas para a Infância começaram a trabalhar conjuntamente com objetivo de verificar possíveis impactos do isolamento social na ocorrência e na notificação da violência sexual contra crianças e adolescentes, com foco na análise dos casos de estupro de vulnerável. A presente nota técnica é resultado desse trabalho conjunto, com vistas a produzir evidências e dar visibilidade a este grave e recorrente problema e à necessidade de avançar na adoção de medidas para enfrentá-lo.

Para tanto, parte-se da análise focada nas ocorrências de estupro de vulnerável registradas pela Polícia Civil do estado de São Paulo entre janeiro de 2016 e junho de 2020. Os dados foram obtidos mediante solicitação do Ministério Público de São Paulo à Secretaria Estadual de Segurança Pública. A fonte dos dados é o sistema de Registro Digital de Ocorrências da Polícia Civil do Estado de São Paulo e a extração foi feita pela Coordenadoria de Análise e Planejamento da SSP-SP.

Apresenta-se de início a evolução dos crimes de estupro segundo as estatísticas oficiais do estado de São Paulo, que contemplam o número de casos registrados de estupro e de estupro de vulnerável, da série publicada mensalmente pela SSP-SP, para em seguida desenvolver a análise detalhada que permite caracterizar os casos de estupro de vulnerável a partir da base de microdados obtida via extração do RDO.

Acesse na íntegra o relatório Análise das Ocorrências de Estupro de Vulnerável no Estado de São Paulo 

Considerações Finais e Recomendações

Muitos dos impactos da pandemia de Covid-19 e das medidas adotadas para combatê-la são ainda desconhecidos, ou difíceis de mensurar. A análise contida nesse documento representa um esforço de apontar uma das consequências dos eventos de 2020 – o aumento dos casos não denunciados de violência sexual.

Nossa análise dos dados dos boletins de ocorrência aponta para uma queda brusca no número de casos registrados de estupros de vulnerável no período entre 24 de março e 30 de junho de 2020, comparado com o mesmo período em 2019 – uma queda de 28% no número de estupros comunicados, em relação a 2019. Uma comparação mês a mês mostra uma queda de 40% em abril e maio, também em relação a 2019.

Mas estupros de vulnerável, nossa análise também mostra, são crimes predominantemente domésticos – na média histórica, quase 4 em cada 5 registros desse crime indicam como local de ocorrência a residência da vítima. As medidas de distanciamento social adotadas para prevenir a transmissão do novo coronavírus, que diminuíram a circulação pela cidade e mantiveram crianças mais tempo em casa, podem explicar a redução de crimes de oportunidade, como roubos e furtos, mas não a queda nos registros de estupros. Tudo indica que aumentou o tempo que as crianças passam dentro de casa, e é dentro de casa que elas são vítimas de violência sexual.

Nossa análise aponta, portanto, para um provável aumento da subnotificação desses casos de estupro. Considerando outros fatos conhecidos da dinâmica da violência sexual contra meninos e meninas, esse resultado não surpreende: as escolas, espaço mais comum onde eles e ela são acompanhados fora de casa, foram fechadas; o contato com adultos fora do círculo familiar imediato diminuiu bastante, para a maioria. Outros espaços importantes para a construção de vínculos de confiança com adultos fora de casa, como CCFV (Centro de Convivência e Fortalecimento de Vínculos) e cursos e atividades extra curriculares, culturais e esportivos, também ficaram indisponíveis. Mais distantes de espaços e pessoas em condição de observar sinais de violência, as possibilidades de denúncia para as vítimas, ou por elas, diminuem muito.

Nossa hipótese – de que os estupros não diminuíram, mas as denúncias sim– leva à triste constatação de que há um grande número de meninas e meninos que foram ou estão sendo vítimas de violência sexual, ocultos pela ausência das denúncias. Essa violência tem consequências para suas vítimas, para sua saúde física e mental, que se tornam tanto mais graves quanto mais tempo passa sem que recebam atenção e tratamento.

É crucial, portanto, que as instituições do sistema de garantia de direitos se preparem para atender às vítimas mantidas ocultas pela pandemia. Na medida em que a circulação pelas cidades voltar progressivamente ao normal, e que as escolas e outros serviços reabram para atendimento presencial, precisamos estar prontos para um primeiro momento difícil, em que tudo acumulado e mal resolvido dos últimos meses transborde de uma vez. Os serviços têm que estar mais atentos, os funcionários preparados, informados e treinados para lidar com um número possivelmente maior de casos. Concretamente, a responsabilidade do Poder Público em oferecer o atendimento quando necessário e os meios para identificação desses casos deve se efetivar em ações que promovam campanhas de sensibilização, ampliem canais virtuais de denúncia, ofereçam capacitação continuada aos atores que atuam no Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente e ampliem a rede de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência

As instituições diretamente responsáveis pelas medidas de proteção de crianças e adolescentes – conselhos tutelares, polícias, sistema de justiça –precisam ter atenção especial para procurar e proteger as vítimas mantidas ocultas pela pandemia, especialmente as que ainda estão expostas a risco. Precisam garantir que elas serão ouvidas, e que não estarão sujeitas a nenhum tipo de retaliação ou revitimização. É preciso ampliar e fortalecer o atendimento especializado e sua capacidade de atender a demanda de uma numerosa população vulnerável à violência sexual e cujo enfrentamento exige políticas e ações efetivamente integradas.

Antes da pandemia, os números dos estupros de vulnerável no estado de São Paulo já eram assustadores: em 2019, foram mais de 9.200 casos registrados, ou mais de 1 caso por hora, em média. Prevenir a violência sexual, em quaisquer circunstâncias, requer ações de toda a sociedade. As instituições do sistema de garantia de direitos têm que atuar de forma integrada, com equipes treinadas para identificar sinais de abuso e para acolher vítimas com a sensibilidade e o respeito de que elas precisam. Pais e responsáveis devem construir uma relação de confiança com crianças e adolescentes, estimulando diálogo e entendimento. As próprias meninas e meninos precisam saber reconhecer situações de perigo, ou quando estão sendo expostas a atos impróprios, para que possam se proteger.

Toda criança tem direito a uma infância segura. Tem direito de ser criança, brincar, aprender e ser protegida contra qualquer forma de violência. Durante a emergência de saúde pública causada pelo novo coronavírus isso ficou mais difícil, mas por isso mesmo ainda mais crucial. A violência sexual deixa traumas para a vida toda. Essas meninas e meninos não devem ser revitimizadas ou expostas. Elas precisam de acolhimento, cuidado e que seus direitos sejam garantidos.




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