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Violência contra a mulher surda: precisamos falar sobre isso

Mas e quando essa mulher vítima de violência doméstica é surda, como proceder? Como prestar um acolhimento digno?

Alessandra Caminha* Publicado em 25/08/2020, às 00h00 - Atualizado em 15/01/2021, às 11h52

A mulher surda precisa ser ouvida
A mulher surda precisa ser ouvida

Neste mês, comemoramos o agosto lilás, campanha que alerta a população sobre a importância da prevenção e do enfrentamento da violência contra a mulher e a Lei Maria da Penha completou também seus 14 anos de existência.

A violência contra a mulher firma-se na trama da relação de poder que, historicamente marca a vida das pessoas na sociedade, no qual alguns agressores agem diante da vulnerabilidade que a mulher se encontra, e operam por meio da força para obter o poder e o controle sobre a vítima.

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Além de ser uma questão política, cultural, policial e jurídica, é principalmente, um caso de saúde pública. Muitas mulheres adoecem a partir de situações de violência doméstica, que recebe esse nome por ocorrer dentro do lar, e o agressor ser, geralmente, alguém que já manteve, ou ainda mantém, uma relação íntima com a vítima.

A violência se constitui em todo e qualquer ato embasado em uma situação de gênero, na vida pública ou privada, que tenha como resultado dano de natureza física, sexual, moral, patrimonial ou psicológica, incluindo ameaças, coerção ou a privação arbitrária da liberdade.

A lei de número 11.340, de 7 de agosto de 2006, passou a ser conhecida como Lei Maria da Penha, onde no Estado do Ceará, a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, enquanto dormia, foi atingida por tiro de espingarda desferido por seu então marido, um economista colombiano de origem e naturalizado brasileiro. Em razão desse tiro, a vítima tornou-se paraplégica.

A relação entre a violência contra a mulher e a sua saúde tem se tornado cada vez mais claro, ainda que a maioria das mulheres não relate que viveu ou vive uma situação de violência doméstica. Por esta razão, é extremamente importante que os profissionais de saúde sejam treinados para identificar, atender e tratar as pacientes que se apresentam com sintomas que podem estar relacionados a abuso e agressão. Logo, a psicologia não pode se furtar de buscar compreender esta problemática, em face da magnitude de sua repercussão, tanto no âmbito social quanto no que tange à saúde das mulheres vitimadas.

A mulher em situação de violência se apresenta com medo, insegurança, desconfiança, dor, incerteza, frustração, além das lesões físicas. Diante de tal situação, ela, acima de tudo, merece e deve ser atendida com respeito e solidariedade e precisa receber orientações que a ajudem a resolver ou diminuir seus problemas e se fortalecer para sair do ciclo da violência.

Mas e quando essa mulher vítima de violência doméstica é surda, como proceder? Como prestar um acolhimento digno?

Segundo dados do IBGE de 2010, são 10 milhões de pessoas surdas no Brasil, que equivale a 5% da população brasileira e, desses, 2,7% são surdos profundos. Para os surdos, a aprendizagem da Língua Brasileira de Sinais – Libras como primeira língua (L1) propicia o desenvolvimento linguístico, cognitivo, psicológico e social tornando-os indivíduos constituídos integralmente, pois enquanto língua oportuniza a comunicação, a socialização, a formação de conceitos e a aprendizagem. O uso da língua de sinais possibilita capacidade de expressão dos pensamentos, de ideias e sentimentos de forma clara tanto quanto a aprendizagem de uma língua na modalidade oral, uma vez que exercer as mesmas funções que a língua falada para os usuários ouvintes.

Desta forma, a língua de sinais, torna-se uma questão social, onde faz se necessário o seu aprendizado não só em órgãos públicos e privados de atendimento, tornando esses espaços acessíveis, como também em escolas desde a educação infantil, fazendo com que a inclusão ocorra de fato, na prática.

Sabemos que atualmente temos o disque denúncia com o número 180 para mulheres denunciarem seus agressores, mas as mulheres surdas acabam ficando literalmente em desvantagens por questões comunicativas e de falta de acessibilidade, em muitos casos onde as delegacias não dispõem de intérpretes de libras ou de profissionais capacitados para atender a esse público. E acaba que muitas mulheres se sentem desprotegidas e desrespeitadas, por vezes correndo riscos de vida, por não possuírem um atendimento capacitado para lidar com suas necessidades e peculiaridades.

Enquanto psicóloga bilíngue, venho me dedicando ao atendimento clínico a pessoas surdas. E percebo que os surdos possuem uma grande dificuldade em lidar com suas emoções e sentimentos. Não por serem diferentes dos ouvintes, que experienciam os mesmos conflitos e angústias, mas pela escassez de um sistema de atendimento psicológico que contemple suas demandas e particularidades. É essencial uma convivência constante com a comunidade surda, para uma melhor compreensão de sua cultura e identidade, além da fluência na língua para que a comunicação e a dinâmica terapêutica ocorram de forma plena.

Devido a uma certa busca de mulheres surdas que me procuraram relatando estar em conflitos em seus relacionamentos afetivos, comecei a me dedicar nessa área e me envolver com a temática, onde criei um grupo terapêutico com mulheres surdas, que é focado no acolhimento emocional e nas relações de troca entre as participantes, onde busco desenvolver e fortalecer a autoestima, a autoconsciência e o autoconhecimento dessas mulheres por meio de diálogos reflexivos e experimentos terapêuticos. A prática de se conhecer melhor faz com que a pessoa aprenda a lidar com as suas emoções, independentemente de serem positivas ou não. E muitas dessas mulheres não conseguiam identificar que estavam sofrendo violência de seus parceiros até que chegasse à agressão física. Então conscientizar é algo fundamental para capacitar e possibilitar escolhas racionais.

Portanto, gostaria de finalizar essa reflexão, dizendo a você que a empatia é um sentimento nobre e que precisamos desenvolver cada vez mais em nosso meio social, aprendendo sempre a olhar para nós mesmo em busca de se compreender, se acolhendo com amor, respeito e gratidão e da mesma forma olhar para o outro em busca de talvez cultivar os mesmos sentimentos. Vamos então contribuir para minimizar as barreiras comunicativas entre surdos e ouvintes de nossa sociedade?

Imagem de Alessandra Caminha

*Alessandra Caminha é psicóloga bilíngue (Libras/Português), pós-graduada em Psicologia Clínica (Gestalt-terapia), pós-graduada em Educação Bilíngue de Surdos, pós-graduanda em Tradução/Interpretação e Docência da Libras, atua como psicoterapeuta individual, casal e grupo

Confira a entrevista exclusiva de Mariana Kotscho com Maria da Penha:

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