Papo de Mãe

Diário de uma quarentena – Parte 2

E agora, 3 meses depois de tudo isso, posso citar uma frase do Nelson Mandela que se encaixa perfeitamente na minha atual situação: Há vitórias que são importantes apenas para aqueles que as conseguem.

Roberta Manreza Publicado em 25/08/2020, às 00h00 - Atualizado às 09h17

Imagem Diário de uma quarentena – Parte 2
25 de agosto de 2020


Por Marília Mendes, Editora de literatura infantojuvenil

Já passei dos 140 dias de quarentena. Já aconteceu tanta coisa desde que escrevi o relato dos 40 dias que eu nem sei se sou capaz de lembrar de tudo, mas vou tentar.

Vou começar retomando relatos do texto anterior. Primeiro tenho que agradecer aos amigos e parentes que me deram devolutivas tão boas. Alguns dizendo que estão passando o mesmo, outros com algumas palavras de encorajamento, alguns parabenizando pelo texto e várias outras manifestações. Obrigada mesmo.

A rotina da casa que me matava já faz parte do meu dia a dia. Não sofro mais em ter que pensar no almoço, jantar, colocar a mesa, tirar, lavar a louça… Agora temos mais opções de alimentação, graças às comidas congeladas da minha mãe ?… Compramos uma toalha plástica que fica na mesa direto. Isso ajuda bastante na hora das refeições, no “põe e tira”(desde que compramos, ela não saiu mais da mesa). Aliás, uma coisa que fizemos muito nessa quarentena foi comprar. Tudo que lembrávamos, íamos comprando na Amazon, Americanas e alguns outros sites. Alguns pedidos de farmácia por telefone. Até móveis, quadros e papel de parede cheguei a comprar pra das uma mudada na decoração de casa. A coitada da porteira não aguenta mais ligar em casa pra avisar que chegou “um pacote”.Isso também gera um lixo absurdo. Meu Deus, como podemos produzir tanto lixo assim?

Ah, sobre as vaidades diárias, continua tudo na mesma: não seco mais meu cabelo, lavo um dia sim, dois não (mas já estou desesperada pra cortar o cabelo – essa vai ser minha próxima conquista). Uso basicamente só uma legging preta, uma calça de moletom, 2 ou 3 camisetas alternadas e 2 blusas para os dias frios.

Continuo não reclamando da oportunidade de ficar em casa e curtir a família, como sempre pedimos. Eu só sofro com a falta de rotina que a Marcela estava acostumada. Os cartazes que colocamos em casa nas primeiras semanas já não funcionam mais faz tempo.

E agora, 3 meses depois de tudo isso, posso citar uma frase do Nelson Mandela que se encaixa perfeitamente na minha atual situação: Há vitórias que são importantes apenas para aqueles que as conseguem.

Por mais que muita gente esteja de longe vendo nossas dificuldades nesta quarentena, ninguém consegue imaginar de fato tudo que passamos no dia a dia. Por mais que todo mundo veja nossa situação como “difícil”, por mais que todo mundo fale (ou pense):

“Nossa, coitado deles. Com uma criança de 3 anos na fase da birra e mais uma recém- nascida sem poder ter a ajuda de ninguém não deve estar sendo fácil”, ninguém sabe o quanto realmente está sendo difícil.

Tenho dito que, se eu sobreviver a essa quarentena, vou morrer com 200 anos, porque posso sobreviver a qualquer coisa. Ao mesmo tempo, às vezes parece que envelheci 10 anos nesses últimos meses.

Seria possível fazer um distanciamento social se fosse uma escolha minha, programada. Eu poderia me despedir das pessoas, me organizar, pensar e ter certeza se era isso que eu queria. Mas não. Foi de um dia pro outro. Não deu tempo de fazer as coisas que eu mais gostava como uma “despedida por tempo indeterminado”. Fui pega de “supetão”e fiquei perdida. Porque, sim, eu tenho uma vida muito programada. Essa é uma mudança das muitas que a quarentena veio me ensinar. Assim, como um tapa na cara mesmo.

Teria sido uma delícia saborear um almoço numa churrascaria ou tomar café na padaria e pensar: “Ok, agora não vou vir mais aqui por um tempo indeterminado”. Ou até dar uma volta no shopping com esse pensamento; encontrar os amigos e parentes para uma“despedida”. Mas não. Fui pega totalmente despreparada para esta situação.

Desde que escrevi meu primeiro relato, com 40 dias de isolamento, muita coisa mudou. Minha filha mais velha também viu sua vida virar de ponta-cabeça. Se não é fácil pra gente, imagine para uma criança que não tinha nem completado 3 anos ainda! E que completou 3 anos com uma festinha em casa, só com mãe, pai, irmã e tia. Ainda bem que a tia estava pra parecer mais uma festa. Um bolinho (delicioso), umas bexigas e umas fotos bonitas pra deixar registrado. E só.

Desde os 5 meses de vida ela vai pra escola. De repente, um dia, fui buscá-la e informei: a partir de amanhã não vamos mais. E não sei quando vamos voltar. A escola era referência pra ela pra tudo: horários, alimentação, atividades, brincadeiras, recreação, esportes, amigos…. Tanta coisa que ela perdeu. E não sei nem falar pra ela por quanto tempo.

Ela teve que se adaptar a ficar presa em casa, só com pai e mãe. Sem ver ninguém: nem avós, nem tios, nem amigos… Sem sair pra passear em lugares legais. Sem conviver com os amigos da escola todo dia, mesmo que fosse pra brigar com alguns de vez em quando… Perdeu grande parte de sua referência.

Depois disso, aprendendo a viver essa nova rotina, ora com o pai enquanto a mãe trabalhava trancada no escritório, ora com a mãe, chegou a irmã. Teve que ficar com a tia, sendo que nunca tinha dormido sem um dos pais… Teve que acompanhar uma nova criança chegando em casa e tirando a exclusividade da atenção dela.

As brincadeiras que no começo da quarentena eram divertidas, ficaram monótonas.

Parece que faz séculos que jogávamos as cartas do mico incansavelmente. Que assistíamos todos os dias Frozen, Moana, Valente, Viva – a vida é uma festa… Depois de um tempo a obsessão virou a Peppa. De manhã, de tarde, de noite… até de madrugada se deixar. Os mesmos episódios infinitas vezes. Mas devo dizer que a porquinha me surpreendeu. Ela ensina coisas engraçadas que a Marcela insiste em imitar o dia todo. Não só ela. Nós também temos que repetir os diálogos que ela sabe de traz pra frente… Mas se a gente não souber, não tem problema. A Marcela ensina: “Você tem que falar blá blá blá”. E nós falamos “blá blá blá” pra ela poder continuar a conversa igualzinha ao episódio. E a gente se diverte. Pelo menos um pouco.

As birras continuaram. Começamos a dar um floral pra ver se ajudava. Achei que no dia seguinte já seria melhor. Depois de 15 dias, uma melhora de… 0,1%. Já estava desistindo, quando resolvi ler e descobri que poderia demorar 2 meses pra começar a fazer o efeito esperado. E quem consegue não surtar nessa situação? Tento me esforçar para entender o lado dela, por mais cansativo que seja quando o surto acontece. Mas, como tudo passa, depois de 1 mês tudo começou a melhorar de fato, com os escândalos mais espaçados. Depois voltaram mais intensos, até descobrirmos que o buraco era mais embaixo. Agora temos fé que vão cessar de vez.

Também começaram as atividades remotas da escola, que tinha entrado em férias no primeiro mês. No começo, achei que ia ser impossível. Mas depois me forcei a acompanhar e não perder nenhum dia. Ela enrola bastante até começar a fazer. Mas a chantagem muitas vezes fala mais alto. E a recompensa também. Tem que fazer atividade antes do almoço se quiser brincar no parquinho. Tem que fazer atividade direitinho se quiser comer chocolate, se quiser tomar sorvete… pensando na educação, sei que não é a melhor opção. Mas é o que funciona. E nesse momento, é o que tenho seguido: sempre o que funciona.

Com a recém-nascida, tenho mais dó ainda. Conheceu 3 pessoas no mundo: a mãe, o pai e a irmã (além da equipe médica, claro, mas isso foi só um contato rápido). Ah, conheceu também a pediatra, que já foi várias vezes. E só. Avós, bisos, tios, amigos… Esses só numa tela retangular. E quando puderam conhecê-la pessoalmente, depois de 1 mês de vida, se emocionaram. Foi até bonito de ver. Graças a Deus ela é muito boazinha. Acho que veio preparada pra encarar essa situação no mundo que ia chegar. Não chora, mama bem, dorme bem, sorri e se diverte olhando a irmã. Às vezes começo a conversar com ela e ela sorri tanto… Parece que nem está acreditando que estou dando 100% de atenção a ela naquele momento. E eu me culpo, peço mil desculpas por não poder dar a atenção que eu gostaria, que eu tinha planejado. Planejei tantos dias legais com ela. A Marcela estaria na escola, o Fernando trabalhando normalmente no escritório. Eu iria passear com ela, encontrar alguma amiga com horário mais flexível, ia na casa de parentes, ia nos parques, poderia até dormir algumas vezes junto com ela no meio da tarde. Mas não. Nada disso foi possível!

Diferentemente do primeiro parto, dessa vez eu já estava fazendo faxina depois de 15 dias de cirurgia. Não podia chamar a faxineira. O marido arrumava o que dava, mas a parte mais chata eu não conseguia deixar passar. Tive um pouco mais de dor, comparado com a

primeira cesárea, claro. Mas sobrevivi. E me sinto forte por isso. Dormindo muito mal de noite, tendo que dar atenção à mais velha de dia. Não foi nada fácil.

Acompanhei as coletivas do governador quase que diariamente. Sempre esperando ver uma luz no fim do túnel. Esperei ansiosamente pela informação sobre a retomada da educação. E quase caí pra trás quando informaram que seria só em setembro. Era meio de junho. Ainda teríamos mais julho inteiro, agosto inteiro e começo de setembro que, se juntar com o fim de junho que ainda faltava, dava 3 meses. Sem contar os quase 3 meses que já estávamos em casa. Claro que prezo pela saúde e segurança da minha filha, mas confio na preparação da escola. Para eles também não está sendo fácil ficar esse tempo todo fechado. Estão com tudo pronto para seguir os protocolos assim que liberarem a abertura. Mas… só em setembro? Bom, não temos como lutar com isso. Temos que tentar levar da melhor maneira possível, esperando ansiosamente o dia 8 de setembro (se não mudar até lá).

Ah, e eis que no meio de tudo isso, um dia a Marcela acorda de madrugada, o que não é comum, vai pra sala e resolve continuar dormindo por lá. O Fernando vai também lhe fazer companhia. De repente ele acorda com o barulho e o choro: ela caiu no chão, toda enrolada no edredom. Chorou muito e começou a colocar a mão no pescoço. O pai ficou fazendo uma massagem e ela adormeceu de novo. Depois disso, não foi mais a mesma. Não quis sair do sofá, não quis se trocar, não quis levantar nem pra ir ao banheiro… ficou chatinha e manhosa o dia todo. Almoçou rápido e logo voltou pra mesma posição. Ficamos preocupados, mas achamos que era manha. No dia seguinte, parecia um pouco melhor, mas ainda manhosa. Falamos com a pediatra e ela sugeriu que levássemos em algum lugar. Eu não sou essas mães desesperadas, que leva pro pronto-socorro pra qualquer coisa. Ainda mais com a pandemia, com vírus pra todo lado. Quis evitar de todo jeito e continuei falando com a pediatra. Mais um dia e não fizemos nada. Tentamos ir na pracinha, no parquinho do bairro… Nada deixava ela feliz. Até que resolvemos escutar a pediatra e levar num ortopedista no dia seguinte de manhã, 3 dias depois do “acidente”. Foi só com o pai, já que eu tinha que cuidar da bebê, dar de mamar e estava preocupada com a vulnerabilidade da pequena, ainda sem vacinas, em uma clínica.

Após um escândalo pra ser examinada, aceitou bem tirar o raio X. E o resultado? Quebrou a clavícula. Quase morri quando o pai me contou. De dó, de remorso, de arrependimento por não ter acreditado na sua dor e feito algo antes… Talvez tivessemelhorado alguma coisa. Talvez não. Porque não tinha “cura” imediata. Para crianças, não precisa imobilizar. Era só usar uma tipoia, se quisesse (claro que nem tentamos, porque sabia que ela não usaria, até porque ela mesma resolveu ficar com o bracinho parado) e dar remédio pra dor, que já estávamos dando desde o dia da queda.

Saíram de lá com um pedido para tirar um novo raio X em 3 semanas. Depois depoucos dias ela já começou a levantar o braço e mostrar que estava bem. E falar: “Nós podemos ir na pracinha, porque meu dodói já se foi!”. Foi um alívio.

E então começamos a ser um pouco mais “displicentes” com a quarentena. Vejam que eu não disse “irresponsável”, e sim “displicente”. Porque saímos sempre muito protegidos.Sempre com máscara, álcool em gel toda hora e um certo distanciamento das pessoas. Mas pelo menos conseguimos voltar minimamente à vida: fomos na casa dos meus avós, fomos para o sítio, fomos na pracinha encontrar com amigos… Isso fez muita diferença na vida de todos nós. Sem contar as descidas para o parquinho, que fazíamos já há bastante tempo (mas até do parquinho a Marcela enjoou), e depois para a piscina. Poder brincar com outras crianças aliviou um pouco a prisão domiciliar.

Também começamos a receber uns amigos em casa. E o mais triste: receber ótimas notícias de alguns deles e não poder ao menos dar um abraço. Isso realmente cortou meu coração! A Marcela aprendeu bem que não pode beijar nem abraçar. Nem mesmos os avós. O “oi” é só com o cotovelo ou os pés. Tem gente que acha isso um perigo, acham que as crianças vão ficar frias, distantes, sem saber demonstrar os sentimentos. Eu não acho. Primeiro porque entre eles, até que estão se abraçando. E eu deixo. E depois porque acreditoque da mesma forma que ela aprendeu que “não pode abraçar porque tem bichinho”, elapode reaprender a demonstrar o carinho do jeito dela quando falarmos que está liberado.

No fim de julho ela voltou pra natação. Isso foi realmente maravilhoso. Voltar para alguma atividade da sua antiga rotina, ver a professora que ela adora, rever uma amiga da escola, que voltou também pra aula no mesmo horário, fazer uma atividade que gasta toda a energia dela… Simplesmente maravilhoso poder ver a vida voltando aos poucos.

É a sensação que tenho quando passeio de carro e vejo movimento nos restaurantes, lojas abertas, pessoas andando. Ainda me sinto num filme vendo todo mundo de máscara. Mas sei que isso vai persistir por um bom tempo, até termos tranquilidade e segurança para sair sem ela. Mas ver o movimento nas ruas, o som das pessoas, o barulho da vida… isso me deixa extremamente feliz.

Ainda não vejo uma luz no fim do túnel para quando tudo isso vai acabar. Mas vejo um rastro de luz de um retorno aos poucos de uma nova vida normal.

Enquanto isso, seguimos aqui. Firmes e fortes. Cada dia com um novo desafio. E olha que não está sendo fácil. Nem um pouco. Apesar de esgotada (tenho usado muito esta pal

avra, porque me define bem no momento), estou me sentindo cada dia mais forte.

Eu realmente espero que meu próximo texto seja para falar sobre o fim da quarentena, o retorno ao novo normal e a alegria em ver o quanto saí fortalecida dessa prova!

Finalizo com uma música que gosto muito do Jota Quest: “Vivemos esperando dias melhores. Dias de paz, dias a mais, dias que não deixaremos para trás. Vivemos esperando o dia em que seremos melhores. Melhores na dor, melhores no amor, melhores em tudo. Vivemos esperando o dia em que seremos para sempre. Vivemos esperando dias melhores.Dias melhores pra sempre!”.

Lila, 2 de agosto de 2020.



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