Papo de Mãe

Com ausência dos homens, mulheres se sobrecarregam nas dinâmicas familiares

Roberta Manreza Publicado em 17/10/2015, às 22h00 - Atualizado em 18/10/2015, às 14h05

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18 de outubro de 2015


Apesar do enfraquecimento das figuras masculinas, pesquisa em região pobre de São Paulo apontou ainda forte influência do modelo de família tradicional na comunidade

Por Letícia Paiva, para a Agência USP de Notícias

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Como técnico do serviço de medidas socioeducativas em meio aberto na região do Campo Limpo, distrito pobre da Zona Sul de São Paulo, o psicólogo João Victor de Souza Reis observou de perto as novas configurações da família brasileira. Sua experiência resultou em dissertação pelo Instituto de Psicologia da USP, analisando a dinâmica das famílias ‘matrifocais’ pobres e o lugar em que os homens, principalmente os pais, se inserem nessas relações. No serviço, ele acompanhava adolescentes em situação de conflito com a lei, além de suas respectivas famílias. Notava a forte presença das mulheres em atividades que englobam o cotidiano dos filhos e da família, enquanto as figuras masculinas pareciam estar encobertas por uma grande nuvem.

Essa realidade é demonstrada pelo último censo do IBGE, em que 50,1% das famílias não são constituídas de casais com filhos; 30,6% dos domicílios são chefiados por mulheres; a monoparentalidade feminina corresponde a 17,3%, enquanto a masculina é de 2%. A atual  formação familiar brasileira vai de encontro ao ideário tradicional de família, fixado na heteronormatividade e na presença de uma família nuclear. Ela tem a mulher, normalmente a mãe, como figura central e detentora das tomadas de decisão, além de grande responsável pelo sustento econômico. Os homens deixam de ocupar sua posição clássica de líder e provedor, apagando seu lugar, e ausentando-se também de outras atribuições da dinâmica familiar.

Os lugares de homens e mulheres dentro do grupo familiar mostravam-se diferentes do que era geralmente concebido no discurso dos adolescentes. As mulheres trabalhavam dentro e fora de casa, centralizavam as funções familiares e lidavam com os programas de transferência de renda. Durante as entrevistas, as famílias aparentavam haver pouco conhecimento sobre a trajetória e o histórico familiar da figura parental, ausente das entrevistas. Nos atendimentos, esta aparecia como marginal, com pouca ou nenhuma importância. Em visitas domiciliares, após o complicado processo para conseguir horário que não conflituasse com o trabalho dos familiares, o psicólogo notou que as famílias eram hegemonicamente compostas por mulheres. Eram elas que recebiam o técnico, guiavam a visita e os apresentavam ao restante da família.

As configurações familiares eram diversas, variando de famílias extensas às monoparentais compostas apenas de mãe e filho, cada qual contando com suas peculiaridades. Essas estruturas eram verificadas não apenas nas famílias envolvidas com o serviço, mas em toda a comunidade. No entanto, os modelos de família nuclear tradicional, muito presentes no discurso dos adolescentes atendidos, impactavam as dinâmicas familiares, influenciavam atitudes e afetavam o cotidiano dos adolescentes.

Excetuando os casos minoritários em que os pais, mesmo distantes do grupo familiar, demonstravam interesse pelos adolescentes, o pesquisador percebeu que, com certa frequência, a figura paterna é (aparentemente) pouco conhecida, em seu histórico de vida ou em características pessoais; enfraquecida, possuindo pouca influência familiar; e, muitas vezes, fisicamente ausente. Era comum haver um padrão de comportamento no qual o lugar feminino estava claro, enquanto o masculino era nebuloso, permanecendo às margens das principais decisões e afastado de muitas ações cotidianas familiares.

As mulheres, por desempenharem múltiplas funções e centralizarem as decisões, se encontravam constantemente muito cansadas e desgastadas física e emocionalmente. “Em muitas ações os homens se desresponsabilizam ou são desresponsabilizados, o que acaba transferindo para a mulher o peso das urgências familiares. E elas são colocadas em uma posição na qual não há grandes alternativas se não tentar sanar tais urgências”, afirma o pesquisador. Dessa forma, muitas carregam a insígnia de ‘mulher forte’, sendo vistas e se denominando como tal, apresentando, assim, uma relevante característica, como também, uma forma de trazer norteamento e segurança diante das dificuldades diárias.

Nas famílias monoparentais de chefia feminina, é comum que o filho, ao se responsabilizar pelas despesas da casa, ocupe o lugar de provedor, de uma forma que a dinâmica da família nuclear é reatualizada, agora com o filho no lugar da figura tradicional do pai. O adolescente ocupa o lugar de provimento, sendo o “homenzinho da casa”, mas não lhe é delegada autoridade do grupo. A mãe continua sendo a figura central, tomando decisões que dizem respeito à educação do adolescente e às finanças. Segundo o psicólogo, o trabalho geralmente é usado como legitimador da transição do adolescente para a vida adulta. No imaginário desses jovens, ainda há a concepção de que o homem deve ‘prover’, enquanto a mulher deve ‘cuidar’.

De acordo com o pesquisador, a presença desses ideários rígidos do que vem a ser homem ou mulher, adolescente ou adulto, pai ou filho, presentes no modelo tradicional de família, traz sofrimento, pois dificilmente são atingidos. E ao tentar atingi-los, seguindo tais padrões, são apresentadas aos jovens possibilidades de ações empobrecidas, que acabam por definir comportamentos misógenos e opressores dos quais, muitas vezes, eles próprios são vítimas.

Embora a pesquisa tenha sido realizada com jovens que cumpriam medidas socioeducativas, Souza Reis descarta a hipótese de que seus atos infracionais tenham sido impulsionados pela ausência da figura paterna, considerando os contextos históricos e social em que esses adolescentes estão inseridos. Eles convivem com a pobreza e o crime na porta de suas casas, e detêm relações familiares complexas. O psicólogo defende que não existe a necessidade de haver, obrigatoriamente, um pai na vida da criança ou do adolescente, mas alguma figura que lhe dê atenção e acompanhe seu desenvolvimento. “Se os homens não estão lá, alguém há de estar”.

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