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Quem são os seus heróis?

Por que utilizamos a jornada do herói como justificativa para as nossos sofrimentos e conquistas?

Mariana Wechsler* Publicado em 23/05/2022, às 08h48

A parentalidade não violenta é o caminho para uma relação boa e saudável com seus filhos
A parentalidade não violenta é o caminho para uma relação boa e saudável com seus filhos

Na nossa sociedade ocidental, temos muitos heróis que passam por sofrimentos absurdos para conseguir conquistar algo maior. Algumas dessas personagens sofreram tantos abusos, passaram por tantos sofrimentos antes de vivenciar um momento transformador que muda a vida deles para sempre. Dos heróis da Marvel&DC aos da Disney, praticamente todos passam por essa evolução histórica.

Isso não é somente uma técnica de marketing da jornada do Herói, isso é uma Cultura e bem presente no Ocidente.

O interessante é que alguns personagens da vida real tem suas histórias contadas sob o mesmo enredo, de desafios e perseguições que precedem uma única vitória homérica. Começam com muito sofrimento, passam por um momento de transformação e alcançam o tão almejado objetivo.

Por que insistimos tanto em focar na sobrevivência como um instrumento de ensino?

Por que muitas vezes nos pegamos querendo olhar para esse enredo de sofrimento para justificar uma conquista ao vivenciarmos a nossa própria história?

Por que querer que uma sobrevivência a um sofrimento justifique de alguma forma que o outro, e não mais só você, precise sofrer para conquistar ou aprender algo?

Como sociedade, erroneamente nós aprendemos e alimentamos essa cultura de que traumas por violência ensinam. Traumas de violência não são instrumentos de ensino. Violência física, psicológica ou verbal, nunca é um efetivo instrumento de ensino. Na verdade, qualquer tipo de violência só é um meio de continuar perpetuando a própria violência.

É sabido pela ciência moderna que boa parte dos transtornos psicológicos tem origem em algum tipo de abuso ou violência vivida por quem sofre do transtorno. Claro que há casos que a origem é alguma condição fisiológica, mas definitivamente esse último fator é a exceção.

Violências visíveis e amplamente reprimidas pela Lei são mais simples de detectar e combater. Mas, a pequena violência, as chantagens e ameaças do dia a dia, as expectativas impostas, o desprezo, a ignorância, o silenciamento de sentimentos, tudo isso é como se fossem gotas de veneno. Pouco a pouco, essas gotas são ingeridas pela mente da vítima, entorpecendo a visão e criando uma cultura profundamente enraizada de que sofrer violência é normal e de que podemos aprender com ela.

Como se ser vitima de uma violência fosse uma condição para ser resiliente e ter sucesso.

Eu sobrevivi! Quando eu era criança meu pai e mãe me batiam, e mesmo assim eu sobrevivi. Se eu passei por esse sofrimento e fiquei forte, você também precisa sofrer para aprender.

Vou contar até 10 para você sair do banho senão você vai ver!

Se você não escovar esses dentes agora, todos eles ficarão podres e vai doer muito!

Se você não arrumar o seu quarto, eu vou tirar a TV, o seu video game, e não sai mais com os amigos!

Pede agora desculpa para sua irmã! Ou eu vou te bater até você entender que não pode bater no outros, muito menos na sua irmã!

Está chorando por que? Foi só um arranhão.

Não precisa chorar não, não sofra com isso. Tudo vai ficar bem.

Esses pensamentos estão bem distantes de uma boa saúde mental. Vítimas de um passado, colocando-se como algozes no presente, só perpetuarão sofrimento no futuro próprio e de quem está por perto. Comportamentos assim só ensinam uma única coisa: a própria violência.

Infelizmente, nós viemos de uma cultura que filhos não são seres independentes, nem mesmo independentes emocionalmente. Filhos não existiam nas gerações anteriores, criar uma criança era um fardo, um peso.

A maioria de nós foi atravessada por uma infância violenta, repleta de autoritarismos, silenciamentos e rótulos. E ainda por vezes, quando começamos a contar sobre essa infância, insistimos em relatar esses acontecimentos de forma cômica ou leviana.

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Não conseguimos enxergar a violência que vivemos por estarmos acostumados já que a ela está presente em diversos momentos da vida ainda ou, principalmente, por uma questão de sobrevivência. Isso porque, nossa mente apaga boa parte dessa dor para darmos conta de existir com ela. Nossa mente tenta escapar desses fatos, silenciando os sentimentos ruins. E acreditem, nossa mente foi treinada a não entender os sentimentos, por isso o escapismo é uma solução rápida.

Traumas são inevitáveis, por mais que a gente estude e coloque em prática a educação respeitosa, inevitavelmente traumas fazem parte. Traumas causados por algum tipo de violência podem ser evitados. Portanto, a questão não é evitar que algo “ruim” aconteça com a criança, mas sim perceber onde a violência acontece e evitá-la.

Uma boa e saudável parentalidade não é violenta. Iremos errar, isso é um fato. Reconhecer e corrigir o próprio erro ensina.

Diga para a criança:

Filha, hoje eu passei do limite com você. Eu não te respeitei como eu gostaria de ter te respeitado e eu sinto muito”.

Filho, a regra desta casa é não bater. Não podemos tolerar qualquer violência, se alguém fizer isso com você me diga. Não guarde o sofrimento. Venha e me dá um abraço.”

Você esta chorando, o que aconteceu? Fica comigo aqui até você se acalmar. Quer falar sobre o assunto?

Quando criamos a criança com liberdade de falar, precisamos estar preparamos para escutar sem julgamentos, apenas ouvindo atentamente. A liberdade da criança se expressar é o que pavimenta a construção de uma mente saudável e de uma inteligência emocional afiada.

Um dia uma das minhas crianças agiu de uma forma que eu não havia gostado. Eu comecei a conversar com ela, ou melhor, comecei a dar palestrinha. Eu falava sem parar apontando sobre as atitudes dela. E em determinado momento ela me lembrou o que ensinamos muito aqui em casa: “mãe, você não quer conversar porque você não está querendo me ouvir. Você só está me dizendo como eu deveria agir e isso não é conversar”. Ela tem 7 anos.

Nesse momento eu parei e reconheci que realmente eu não estava escutando ela. Eu estava tão chateada com o ocorrido, que minha vontade era apenas de derramar tudo o que eu estava pensando. Nesse momento, eu me desculpei e pedi para que ela falasse, pois eu estava disposta a ouvi-la.

E eu posso te contar com muita tranquilidade que inúmeras vezes eu cometi os mesmos, e até mesmo, outros erros.

Esse estado de atenção somado a intenção de estar observando a relação o tempo inteiro é que faz a diferença.

O trauma vai existir e acontecer, pois trauma é história e histórias deixam marcas.

A diferença está se a violência é algo cultivado no dia a dia, e também está se a cicatriz desse trauma será cuidada ou não.

“A criança é o futuro” essa é uma frase muito falada.

Será que acreditamos e valorizamos que a criança é realmente o futuro? Como esse futuro esta sendo tratado? Qual futuro você está plantando e cultivando hoje?

Precisamos nos conscientizar de algo muito importante, não há a menor possibilidade da criança ser o futuro sem cuidarmos dela no presente. Pergunte-se antes de tudo: Quem a criança é hoje? O que ela precisa hoje? O que ela sente hoje?

A resposta dessas questões partem de dois importantes movimentos: da ação social e da transformação individual.

Socialmente temos a dificuldade de considerar a criança como um ser que já existe, no hoje. Precisamos considerar que a criança seja vista, ouvida, que seus sentimentos sejam validados, que ela seja cuidada como alguém que é útil e importante no agora.

Enquanto que no individual, quando falamos de infância, não estamos falando apenas da infância das nossas crianças, mas principalmente da nossa infância, da nossa história. E voltar para a nossa história pode ser muito difícil e dolorido. A maioria de nós criou um filtro “fofo” para olharmos para a essa infância.

Aprendemos a falar da nossa infância de um jeito e esquecemos o quanto ela pode ter sido dolorosa em diversos aspectos, o quanto fomos silenciados, quanto que não fomos ouvidos e não são porque nossos pais eram ruins, eles nem sabiam que existia a possibilidade de fazer diferente.

A sua história de herói está em olhar para essas cicatrizes e não se orgulhar delas. Está em olhar para elas com atenção, buscando aceitar todos os sentimentos que foram reprimidos por muitos anos. Está em aceitar a chegada do sofrimento quando revisitar esses momentos.

Olhar para o passado e sentir o que deixou de ser sentido é a melhor estratégia para reconhecer seus inimigos internos; a melhor forma de silenciar as inúmeras vozes da sua cabeça que te diminuem; e o mais eficaz caminho de se perpetuar a paz de espírito e construir uma inteligência emocional saudável.

Quem é agora seu maior herói?

MARI W
Mariana Wechsler

*Mariana Wechsler, Educadora Parental, especialista em educação respeitosa, budista há mais de 34 anos e formada em Comunicação. Mãe de Lara, Anne e Gael. Escreve sobre parentalidade consciente, sobre os desafios da vida com pitadas de ensinamentos budistas e suas experiências morando fora do Brasil, longe de sua rede de apoio. Acredita que as mães precisam aprender a se cuidar e se abraçar, além de receberem apoio e carinho. Sempre diz: “Seja Fantástica! Seja sempre a sua melhor amiga”.

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