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A garantia do aborto legal para crianças vítimas de estupro

Os números da violência contra crianças no Brasil, principalmente no que diz respeito ao crime de estupro, revelam a realidade de crianças brasileiras

Mariana Albuquerque Zan e Ana Claudia Cifali* Publicado em 23/06/2022, às 14h49

Negar a uma criança seu direito de abortar após ter sido vítima de um estupro é atuar contrariamente à Constituição Federal e ao ECA
Negar a uma criança seu direito de abortar após ter sido vítima de um estupro é atuar contrariamente à Constituição Federal e ao ECA

Nesta semana, o Intercept Brasil, em parceria com o Portal Catarinas, divulgou mais um caso de violência infantil no Brasil: uma criança negra, de 11 anos, que está grávida após ter sido vítima de estupro, teve o seu direito ao aborto legal inviabilizado por parte de profissionais da saúde, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina. Trata-se de uma menina que teve sua infância atravessada por uma série de violações graves e foi exposta a um contexto de revitimização por profissionais do Sistema de Garantia de Direitos, os quais têm por dever, justamente, proteger os direitos de crianças e adolescentes

O vídeo da audiência é estarrecedor e evidencia uma situação de flagrante violação de direitos da criança, colocando-nos a questão sobre o nosso papel enquanto operadores do direito, cidadãs/ãos, família e comunidade para efetivação do direito das crianças a uma vida livre de violências. A situação, além de nos horrorizar, também traz à tona a necessidade de refletirmos sobre uma questão estrutural da nossa sociedade e do sistema de justiça brasileiro. A evidente afronta à Constituição Federal, ao Estatuto da Criança e do Adolescente, ao Código Penal e à Lei da Escuta Protegida retrata um cenário de violação sistemática de direitos das crianças pelo próprio sistema de justiça, sobretudo quando se trata de crianças em situação de vulnerabilidade. 

Sob a ótica jurídica, conforme estabelecido pelo art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a prioridade absoluta da criança compreende a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, a precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, a preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.

Além disso, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) e o ECA também preveem a responsabilidade compartilhada entre Estado, família e comunidade para a garantia de direitos das crianças e o dever de colocá-las a salvo de qualquer forma de violência, crueldade e opressão. O Código Penal prevê, em seu artigo 217-A, o crime de estupro de vulnerável, de forma que toda menina menor de 14 anos que esteja grávida foi vítima de estupro. Nesse sentido, relevante frisar que o Código Penal também estipula, no seu artigo 128, as hipóteses do chamado aborto legal, estando entre elas o aborto no caso de gravidez resultante de estupro.  

Tendo em vista a gravidade dos casos de violência e dos impactos que podem causar em uma pessoa que está em uma fase tão especial de desenvolvimento, a Lei 13.431/17 (Lei da Escuta Especializada) garante o direito da criança vítima de violência não ser revitimizada durante a tramitação de ação judicial, de forma que a violência que sofreu não se some a uma nova, dessa vez, institucional.

Consiste, portanto, em direito da criança o depoimento especial, isto é, aquele feito por profissionais especializados e capacitados, como psicólogos e assistentes sociais, e não por agentes do sistema de justiça. Isso porque perguntas e conversas sobre o ocorrido, caso não sejam realizadas por profissionais especializados, podem agravar a situação da vítima, deixando-lhe ainda mais traumas e, muitas vezes, marcas para toda a vida. 

Este caso e os números da violência contra crianças no Brasil, principalmente no que diz respeito ao crime de estupro, são assustadores e revelam a realidade de crianças brasileiras. No país, um estupro é praticado a cada 8 minutos e, em quase 60% dos casos, as vítimas são meninas, negras e menores de 13 anos. 

De acordo com a pesquisa realizada pela Rede Feminista de Saúde, de 2010 a 2019, 252.786 meninas de 10 a 14 anos , além de 12 meninas com menos de 10 anos, engravidaram e tiveram filhos nascidos vivos, sendo que a taxa brasileira é de que uma criança dá à luz a cada 20 minutos no país. Segundo pesquisadoras do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), adolescentes grávidas formam um dos maiores grupos de risco de vitimização violenta e alvo de violações de direitos. 

Já uma pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pela Fundação José Luiz Egydio Setúbal, indica que foram registrados 24.761 boletins de ocorrência de casos de violência contra crianças e adolescentes de 2019 a 2021, sendo que o crime de estupro representa 56,6% do total de registros identificados. Em relação às vítimas, a pesquisa indicou que, em 85% dos casos, as vítimas são meninas e 47% têm entre 10 a 14 anos. Além disso, nesse crime específico, crianças e adolescentes negras somam 51,6% das vítimas. 

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Assim, diante da análise desses dados, há um grupo ainda mais vulnerável em relação ao crime de estupro: meninas negras, o que demanda, dentre outras ações, uma atuação das/os agentes do sistema de justiça alinhada e voltada para a defesa do direitos das crianças, para a redução de desigualdades, para a promoção da justiça social, da equidade e da inclusão sem discriminação. 

Negar a uma criança seu direito de abortar após ter sido vítima de um estupro é atuar contrariamente à Constituição Federal e ao ECA. É, evidentemente, violar o dever de prioridade absoluta na garantia de direitos dessa criança. Determinar que esta criança ficasse em acolhimento institucional, privada do contato com sua rede de apoio e que tivesse o atendimento médico necessário, é submetê-la a uma série de violências e violações graves. Induzir essa criança a manter uma gestação resultante de um estupro não levarou em consideração seu sofrimento psíquico e biológico e acreditar que essa gravidez poderia trazer alegria a uma família que aguarda pela adoção, é compactuar com a ideia de que os corpos de meninas, sobretudo de meninas negras, são descartáveis. 

Ainda que seja necessária e legítima a demanda pela responsabilização dos agentes responsáveis por essa violência, é preciso chamar atenção para o fato de que este não é um caso isolado, e que é inaceitável que fiquemos inertes diante destes números e não nos responsabilizemos, enquanto famílias e comunidade, pela garantia de infâncias livres de violências, de abusos, de explorações e de revitimizações no âmbito do sistema de justiça. 

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Ainda que haja um longo caminho para que os direitos de todas as crianças sejam, de fato, garantidos e efetivados, é necessário que nos esforcemos para a construção coletiva de espaços amigáveis, sensíveis e acessíveis para todas as crianças, espaços estes que contribuam para que crianças e adolescentes possam denunciar as violências sem terem que passar por novas violências, inclusive institucionais. 

É responsabilidade nossa garantir que crianças e adolescentes possam ressignificar suas trajetórias e suas experiências, promovendo a superação das violências e não adicionando mais camadas a ela, para que possam, efetivamente, contar com apoio social e estatal para reconstruir seus sonhos e suas vidas.

*Mariana Albuquerque Zan é advogado no Instituto Alana

Ana Claudia Cifali é coordenadora jurídica do Instituto Alana

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